Integração europeia, Estado-exíguo e reforma da administração

Um paralelismo adequado entre mais Europa Comunitária e um novo regionalismo de inspiração comunitária e colaborativa é absolutamente necessário.

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No que diz respeito ao papel do Estado nacional no quadro da integração europeia, recordo a tese do Estado-exíguo e a conclusão que retirei a propósito (Covas, A (2003), Portugal e a constituição europeia, Oeiras, Celta Editora, pp. 41-50):

Já hoje se observam os efeitos disjuntivos e disruptivos sobre a base económica nacional bem como a ineficiência das políticas sectoriais e regionais à luz do calculismo dos custos de oportunidade; no limite, poderemos vir a ter uma situação insustentável de Estado-exíguo com nação a mais e economia a menos, ou seja, uma situação social e politicamente explosiva, em virtude de o Estado-administração se apresentar como uma empresa política de viabilidade duvidosa e a nação como um país arquipélago com algumas ilhas de desenvolvimento extrovertido enquanto a maioria empobrece alegremente.

Em matéria de regionalização, um tópico pouco discutido diz respeito, justamente, à perspetiva europeia do problema, sobretudo num momento tão crítico como é aquele que decorre da guerra da Ucrânia e dos fluxos migratórios. De facto, no mundo global em que vivemos, a desterritorialização dos sistemas de poder transforma radicalmente a análise das questões tradicionais ligadas à descentralização e regionalização, vistas geralmente como questões de sistema e estrutura. Ora, no quadro da União Europeia, com as consequências profundas da transformação digital, estas questões deixam de ser questões de estrutura para passarem a ser questões de processo, questões de governabilidade mais do que questões de sistema.

Por isso, muito mais do que o Governo e a governação, confinados pela lógica convencional do Estado-administração, temos, hoje, em agenda, o tema da governabilidade em território aberto onde a transformação digital, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas desempenham um papel cada vez mais fundamental. Assim sendo, doravante, a questão essencial:

  • Não é de estrutura, mas de processo e procedimento;
  • Não é de ordenamento jurídico-político, mas de cultura do território;
  • Não é de direito administrativo, mas de cultura administrativa;
  • Não é de cadeia hierárquica, mas de coresponsabilidade pessoal;
  • Não é de administração de interesses, mas de aplicação do critério democrático;
  • Não é de consenso presumido, mas de debate público efetivo;
  • Não é de formatação do destinatário, mas de liberdade de iniciativa;
  • Não é da natureza do prestador, mas da qualidade do serviço prestado.

Dito isto, dois vetores de mudança estão já em plena laboração. Em primeiro lugar, está em curso de formação um sistema de multi-level governance e de networking state, uma governança multiníveis, supra, infra e transnacional. Em segundo lugar, está em profunda mutação a relação entre a administração e o cidadão, diríamos a mutação do poder em cocriação e responsabilidade partilhada. Como consequência, já se antecipa uma nova missão para o nível nacional, agora como árbitro privilegiado de relações centrífugas situadas acima e abaixo do nível nacional, dessa missão retirando, porventura, mais poder regulatório e procedimental, mas, também, mais criatividade do que anteriormente.

No atual contexto, devido à forte contingência implicada pela guerra da Ucrânia e aos enormes custos adicionais que esse esforço acarreta, quero acreditar que um paralelismo adequado entre mais Europa Comunitária e um novo regionalismo de inspiração comunitária e colaborativa, na linha e aprofundamento dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) é absolutamente necessário. Recordo, mais uma vez, o que escrevi a este propósito (Covas, A (1997), Integração europeia, regionalização administrativa e reforma do Estado, Oeiras, INA, p. 245):

A integração e a regionalização são, assim, as duas vertentes, externa e interna, responsáveis pela modernização política do Estado nacional. Recomenda-se, até, um paralelismo adequado nestes dois processos de modernização. Num Estado de estrutura unitária e com uma sociedade longamente estatizada, uma transferência de poderes e competências para a União sem uma correlativa devolução de poderes e competências para entidades infranacionais pode parecer uma traição e um crime de lesa-pátria.

Estou, no entanto, plenamente consciente de que esta não é uma tarefa fácil ou mesmo imediatamente acessível. Para as correntes mais radicais e populistas, de pendor mais nacionalista ou mais esquerdista, mais integração europeia e mais regionalismo infranacional suscitam muitas dúvidas e podem colocar em risco a sustentabilidade política da nação e do Estado. Os dois Estados ibéricos, por razões diferentes, são uma ilustração eloquente dessa inquietação que, diga-se em abono da verdade, é inteiramente legítima no tempo que estamos a viver. Na atual conjuntura europeia e internacional, a integração europeia e a regionalização autonómica e/ou política são processos muito sensíveis que colocam os Estados-membros à beira de um ataque de nervos e criam enorme instabilidade política.

Tudo leva a crer que vamos viver nos próximos anos o dilema do prisioneiro no quadro europeu e nacional. De um lado, a geopolítica e geoeconomia internacionais exigem-nos mais e melhor Europa e uma condicionalidade mais apertada sobre a macroeconomia nacional. Do outro lado, a vigilância e o risco iminente de ajustamento fiscal não consentem que os Estados nacionais transfiram mais atribuições e competências, sobretudo de natureza orçamental e financeira, para as regiões infranacionais. Este dilema irritante vai corroer e condicionar o centro político, pulverizar o espetro político-partidário e tornar, doravante, a governabilidade do sistema político muita mais complexa.

Covas, A (2003), Portugal e a constituição europeia, Oeiras, Celta Editora.

Covas, A (1997), Integração europeia, regionalização administrativa e reforma do Estado, Oeiras, INA.

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