Arrendamento compulsivo e democracia

O arrendamento compulsivo não foi discutido em profundidade na mais recente campanha eleitoral, muito embora as questões relacionadas com a habitação tenham sido objeto de debate.

Ouça este artigo
00:00
04:23

No plano internacional, estamos a viver um momento de especial relevo para os regimes políticos democráticos, uma vez que estamos a assistir à provável chegada ao estatuto de maior potência económica do mundo de um país não democrático. Fica assim em causa a ligação necessária entre relevo económico internacional e democracia, ligação que caracterizou as últimas décadas.

Em Portugal, grande parte do século XX foi passada sob um regime não democrático. Estes antecedentes, pouco auspiciosos para quem, como o autor, defende a democracia liberal, não devem ser esquecidos. Será também de não esquecer um dos principais traços do regime deposto em 1974 – o congelamento das rendas nas cidades, com a consequente degradação de grande número de prédios e de casas.

Sobre o arrendamento compulsivo de propriedades não pertencentes ao Estado, não irei neste momento analisar a bondade da medida, ou a falta da mesma, consoante a perspetiva. Gostaria, isso sim, de referir que a medida não foi discutida em profundidade na mais recente campanha eleitoral, muito embora as questões relacionadas com a habitação tenham sido objeto de debate. Sob o ponto de vista formal, poderão dizer-me, tal não é necessário. Os órgãos próprios, em posse das suas legítimas competências, poderão determinar uma medida desse tipo, ainda que a mesma não tenha sido debatida na campanha eleitoral antecedente.

Sou de opinião, no entanto, que um procedimento deste tipo pode enfraquecer a imagem da democracia junto de sectores do eleitorado, podendo favorecer formações partidárias com escassa ligação ao espírito da democracia. Haverá pessoas que se queixam que os eleitos não cumprem as promessas eleitorais. Na minha opinião, um argumento não menos gravoso é o de que os eleitos levam a cabo aquilo que não foi discutido.

A implementação do arrendamento compulsivo iria (ou irá) produzir a alteração política mais importante, de longe, do corrente milénio, e iríamos (ou iremos) regressar a algum debate da década de 1970, sobre o interesse e a legitimidade da propriedade privada, uma vez que a propriedade continuaria e existir sob o ponto de vista formal, mas, em alguns casos, seria desacoplada da capacidade para determinar o respetivo usufruto real, pelo menos em muitos aspetos.

Para Karl Popper, a democracia é definida, sob o ponto de vista concreto, pela alternância pacífica do poder. A existir tal alternância nos próximos anos, acresceria ao que antecede a possível, ou até provável, revogação de toda esta legislação, com a panóplia de conflitos jurídicos que poderia surgir.

Na perspetiva do autor, e passando agora para o plano constitucional, o direito à propriedade só deve ser coartado em favor do direito à habitação se a limitação do primeiro constituir a única forma de garantir o segundo. Manifestamente, tal não é verdade. O Estado tem meios mais do que suficientes para, através de construção, compra ou arrendamento, se substituir ao mercado, se entende que tal se justifica (o autor não está ele próprio a defender este tipo de medidas). Mais ainda, podem ser tomadas medidas legislativas, mais simples, mas talvez mais eficazes, sobretudo no que respeita às novas habitações e pelo lado do comprador, para não falar do plano fiscal.

Cada um de nós pode pensar o que quiser sobre a ganância, sobre a vontade de se ter cada vez mais dinheiro, propriedades ou o que quer que seja. Somos também livres de pensar o que quisermos sobre a propriedade privada, ou sobre o mercado. Contudo, o século XX assinalou a comparação dos resultados obtidos por regimes políticos baseados na propriedade privada ou no coletivismo. O que se verificou foi que os primeiros tiveram melhores resultados económicos e sociais – em particular, com menos pessoas pobres. Alguns regimes não democráticos incorporaram, entretanto, o capitalismo, e é essa combinação que se tem revelado como um desafio sério para a democracia.

Também eu acho que há coisas mais interessantes para fazer do que pensar apenas no dinheiro. Lamento informar, contudo, que a ganância de uns pode ser útil a outros. Deixo, no entanto, a ressalva que o modelo de crescimento económico atualmente defendido por muitos (crescimento global sem limites) apresenta óbvias limitações a longo prazo, no que respeita ao impacto sobre o próprio planeta.

Em conclusão, seria bom que a política nacional pudesse seguir no sentido certo. Um caminho, não de regresso ao passado, não de controlo do pensamento ou da ação política, não de uma sociedade amordaçada, mas sim de compromisso forte com a democracia liberal – com tudo o que isso implica.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 4 comentários