Dia Mundial… dos heróis

No epicentro do pensamento humanitário está a interpretação da Carta Universal dos Direitos Humanos, e as pessoas que deveriam ser tratadas como pessoas mas não o são.

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Eu tinha 28 anos quando conheci o Jean Pierre com os seus 82 anos. Eu já estava em imersão total nas montanhas do leste do Congo há dois meses, quando este cirurgião belga chegou à nossa missão para nos dar uma ajuda. Para além de aviões e autocarros, o último pedaço da viagem eram oito a 12 horas de 4x4, numa estrada aos solavancos pela irregularidade do piso que me deixou destruído quando a fiz. O Jean Pierre, cirurgião de uma experiência arrebatadora, de uma época em que os médicos ainda eram muito polivalentes, mal saiu do carro - exausto, imaginei eu -, com um brilho nos olhos de uma beleza que só se vê na velhice, disse-nos: “Vamos ao hospital para que me mostrem em que posso ajudar.”

Eu fiquei hipnotizado com a beleza deste ser humano, que durante as duas semanas em que esteve connosco tudo fez para acrescentar conhecimentos e deixar ferramentas num local onde Deus se esqueceu de aparecer, para que pudéssemos ajudar mais e melhor esta população cuja existência o mundo despreza. O Jean Pierre acrescenta à palavra médico a palavra humanitário, não uma vez, nem duas, mas mais de 40 anos, e por isso é um herói.

Celebramos o Dia Mundial do Humanitário e, como sempre acontece com o humanitarismo, todos assobiam para o lado. Eu percebo que a sociedade está anestesiada na espuma dos dias e o pensamento humanitário parece ser um mar de tristezas, mas na verdade é aqui que se conquistam as maiores alegrias do mundo, porque com pouco se faz tanto. Tantos que não morrem à fome, tantas crianças que não morrem de doenças facilmente tratáveis, tantas mulheres que não morrem no parto, tantas meninas que passam a ir à escola. Há alguma coisa mais alegre e bonita do que isto? Haverá algo mais importante por que lutar, do que isto? Há alguma coisa mais bonita do que sentir que somos todos iguais?

Estes dias servem para reflectir, para apontar o foco das atenções e para celebrar o trabalhador humanitário, embora esta data tenha sido criada por um acontecimento muito triste. Há 20 anos, a morte de Sérgio Vieira de Mello (“Sérgio”, na Netflix, com Wagner Moura), responsável das Nações Unidas no Iraque, foi morto com mais 22 companheiros de trabalho, num ataque à bomba, em Bagdad. Daí que, por vezes, este tributo seja direccionado para os riscos, para a insegurança, para os que morrem ou são raptados, o que é obviamente muito importante que se discuta, mas eu diria que o heroísmo não está adjacente aos riscos da integridade física, a verdadeira nobreza deste caminho está na beleza de querer ver, de querer sentir, de querer pôr em prática uma premissa tão simples e tão bonita, mas que a poucos interessa: todas as vidas são iguais.

Neste dia simbólico as minhas memórias viajam pelos sorrisos, pelas lágrimas, pelas vidas e pelas mortes de muitos países, p.e. do Afeganistão, que agora completa dois anos do terror dos taliban a dilacerar corações. O sofrimento humano que daí veio é inenarrável, mas as juras de amor eterno ao Afeganistão do mundo dos ricos, agora transformou-se na repugnante paixão pela Arábia Saudita, e o seu futebol sujo de sangue para comprar consciências, que cometeu um genocídio de cristãos no Iraque através do Estado Islâmico, e é também, de longe, o maior autor moral e financiador do regime dos taliban no Afeganistão que é o único país do mundo que não deixa as meninas ir à escola.

No epicentro do pensamento humanitário está a interpretação da Carta Universal dos Direitos Humanos, e as pessoas que deveriam ser tratadas como pessoas mas não o são. Também revivo as inspirações vindas das pessoas que vivem para pôr em práctica estes ideais, com um carinho especial por aquelas que já com uma certa idade me mostraram a maior de todas as paixões: a consistência e a coerência que persiste mesmo após décadas de trabalho.

Lembro-me do Patrício, com quem trabalhei na República Centro-Africana, enfermeiro-parteiro italiano que tratava as mulheres com uma sensibilidade mágica e que, além disso, adoptou uma família da Eritreia numa das histórias mais bonitas que já conheci. Lembro-me do Kim, um cirurgião de Hong Kong cujo caminho se cruzou com o meu nos confins do Sudão do Sul e, além da humanidade incansável na medicina que me inspirava até à medula, me contava que corria maratonas como guia para atletas cegos. Na página mais cruel e sangrenta dos últimos tempos, que foi a batalha de Mosul, no Iraque, enquanto eu e outros nos esforçamos para que não morresse tanta gente, fiquei vidrado no trabalho da Anna, uma psicóloga austríaca que dava tudo para que não morressem as almas. O seu humanismo, a sua coragem perante o sofrimento psicológico de tantos é para mim algo de transcendente.

Todos estes, pessoas na casa dos 70, já com netos, assim como Jean Paul, um cirurgião costa-marfinense com quem trabalhei no Burundi, cujo profissionalismo só era proporcional ao sorriso perante os casos mais difíceis que nos passavam pelas mãos. Na há maior riqueza do que viver inspirado.

São os humanos que nascem sem o olhar da humanidade que têm que ser celebrados para que a desigualdade imensa no planeta seja encurtada. E são os humanos que lutam para que todos sejamos humanos que merecem ser falados, para que outros tantos vão atrás de um mundo mais justo e uma taxa de felicidade global sempre a subir.

Não se trata de dar a vida, mas sim de dar o maior número de vidas possível. Era bom que a palavra humanitarismo entrasse no vocabulário dos portugueses, e talvez sirva para isso o Dia Mundial Humanitário, ou melhor, o dia mundial… dos heróis.

Ao escolhermos os nossos heróis, escolhemos o rumo da humanidade.

Foto

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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