Fome de Deus

O móbil daquele mar de gente parece fome, mas não é senão a manifestação mais eloquente do desespero em que a humanidade, no que à fé diz respeito, se acha mergulhada.

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Acompanhei à distância, mas não sem interesse, a vinda do Papa a Portugal. Espantam-se uns com a euforia e a comoção que a mesma gerou. Escandalizam-se outros, ora com o uso indevido de dinheiros públicos, ora com a alienação costumeira das massas, ora com o indecoroso "devir-turismo" da peregrinação. Há quem fale – e esses acertam em cheio, embora apostando num raciocínio em que falham redondamente – numa rejuvenescida fome de Deus... De facto, parece ser fome de Deus – de transcendência – o móbil daquele mar de gente. Mas essa fome, como também acontece quando é o espírito e não a barriga a dar horas, não é senão a manifestação mais eloquente do desespero em que a humanidade, no que à fé diz respeito, se acha mergulhada.

Deixou de ser possível, e não é de hoje, acreditar em Deus. Há quem creia acreditar em Deus, e também, entre a minoria mais convicta, quem esteja disposto às acções mais condenáveis ou mais meritórias em nome dessa crença. Os gozos terrenos, a fama e o poder não bastam, e a consciência da finitude pesa. Mas nem o vigor daquela crença nem o ardor desta insatisfação obstam a que as condições de possibilidade históricas da fé em Deus se tenham desvanecido – a que, numa frase conhecida, a crença em Deus tenha perdido o crédito. Riposta, mentalmente, o leitor mais optimista. “Mas e a esperança plasmada naqueles rostos? E a comunhão na fé? E os efeitos positivos da partilha e do convívio? Nada valem? E quem é o autor da crónica – ou quem quer que seja – para ditar a obsolescência da fé de outras pessoas?”

Ciente destas objecções, e simpatizando com elas, apresso-me a notar que não professo o tipo de ateísmo que se arroga, movido pela fé na ciência, certezas acerca da inexistência de Deus. De facto, não creio que alguma vez se possa provar que Deus não existe. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, o facto de este tipo de discussão tender hoje em dia a girar em torno da impossibilidade de provar a inexistência de Deus é em si mesma um sintoma do quão desesperada é a situação actual da convicção fideísta. Já se joga para o empate.

Não desvalorizemos o que é – ou foi – a fé cristã, nem nas suas variantes católica, protestante e ortodoxa, nem nas suas afinidades com outras religiões monoteístas. Acreditar em Deus é – ou foi – uma experiência absolutamente transfiguradora. Tudo seria igual, mas, simultaneamente, absolutamente distinto, iluminado pela fé. E não esqueçamos também como, ao contrário do que proclama um certo ateísmo, fé e razão caminharam juntas durante séculos. Com efeito, como Hegel intuiu, a fé cristã não se afirmou no Ocidente e alastrou ao resto do mundo – com os efeitos nem sempre benfazejos, para usar um eufemismo, que se sabe – ao arrepio da razão, mas mobilizando-a e permitindo que esta se mobilizasse e afirmasse no seio da Igreja. A Igreja atraía as grandes mentes do seu tempo.

Mas tudo isto aconteceu antes de Galileu, antes de Lutero, antes de Colombo – para evocar os três grandes acontecimentos que, segundo Hannah Arendt, constituem a mundividência moderna – ou, sendo um pouco mais generoso, antes de Darwin, Marx, Nietzsche ou Freud. Muito mudou desde então. Esta mudança não supriu as margens de ignorância que circundam o conhecimento humano, mas cerceia, inevitavelmente, as vias pelas quais fé e razão podem caminhar de mãos dadas.

Sinto pelos papas da nossa era: imagino a luta interior a que não podem escapar, contra a impossibilidade histórica da crença em Deus, na busca de uma visão de futuro para a Igreja Católica: Bento XVI, com uma visão centrípeta, de retorno ao centro geográfico e doutrinário da fé; Francisco, com uma visão centrífuga, de abertura, escuta e diálogo. Estas duas visões reagem às duas ameaças que cercam a Igreja Católica, reconduzindo uma à outra de forma circular: o fechamento – como intui Francisco – ameaça-a com a obsolescência e a irrelevância; a abertura – como intuiu Bento XVI – ameaça-a com a dispersão e a redundância. Tornar-se-á a Igreja Católica o que esta Jornada Mundial de Juventude anuncia: um agregador de fés, de sensibilidades espirituais, de boas-vontades ecuménicas?

Não me cabe – nem me interessa – discutir o futuro da Igreja Católica. E talvez, como tantos advogam, a visão centrífuga de Francisco e a influência que tem sejam amplamente preferíveis, de um ponto de vista social e político à escala global, à visão centrípeta de Ratzinger. Ainda bem que temos o Francisco. “Uma Igreja aberta a todos, todos, todos.” Uma igreja sinodal, de solidariedade, fraternidade e acolhimento. É bonito. Na verdade, se atentarmos aos ensinamentos de Cristo, sempre foi assim. E Francisco recorda-o. Mas abertura a todos não significa abertura de qualquer maneira. Tanto que o Cristo que acolhe Madalena é o mesmo que expulsa os vendilhões do templo. Que as duas coisas se confundam, numa era em que a robustez intelectual que, durante séculos, edificou, conservou e reinventou a Igreja, nela já não encontre atractivo, é a manifestação do encontro de dois desesperos: o desespero da multidão esfomeada de espírito e o desespero do sacerdote cuja fé – não a dele, individualmente considerado, mas a do tempo que lhe coube em sorte e ao qual não pode escapar – declinou.

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