A (in)comparabilidade dos estatutos profissionais

Podemos interrogar-nos quanto ao facto de o Presidente só se ter referido ao presente e ao futuro (“não há nem pode haver comparação entre o estatuto dos professores”) e não, também, ao passado.

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“Não há nem pode haver comparação entre o estatuto dos professores, tal como o dos profissionais de saúde, e o de outras carreiras, mesmo especiais.”

A citação é do sr. Presidente da República, no seu texto (ponto 6.) de 26/7/2023, dirigido ao sr. primeiro-ministro, em que fundamenta o veto presidencial (devolução ao Governo sem promulgação) ao decreto que estabelece os termos de implementação dos mecanismos de aceleração de progressão na carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário.

Não estão também aqui em causa (tal como não estão, bem pelo contrário, naquele documento do Presidente) as legítimas razões dos professores e dos profissionais de saúde quanto ao que reivindicam na reposição e melhoria de direitos na sua carreira profissional, salários e condições de trabalho.

O destaque pertinente nesta afirmação incide na afirmada impossibilidade de “comparação” destes estatutos de trabalho com quaisquer outros.

Algo quanto ao qual nos podemos interrogar é o facto de o Presidente da República só se ter referido ao presente e ao futuro (“não há nem pode haver”) e não, também, ao passado.

É que também nunca houve “comparação” entre esses estatutos. Entre esses e não só.

Nunca houve, não há nem pode haver “comparação” entre o estatuto do trabalho dos professores e o do trabalho dos profissionais de saúde e o do trabalho dos profissionais de justiça e o do trabalho dos profissionais de segurança pública e o do trabalho dos profissionais de segurança social, etc...

Mas também nunca houve, não há nem pode haver comparação entre o estatuto do trabalho de um professor, o estatuto do trabalho de um educador de infância, o estatuto do trabalho de um técnico de educação, o estatuto do trabalho de um assistente operacional nas escolas, o estatuto do trabalho de um médico, o estatuto do trabalho de um enfermeiro, o estatuto do trabalho de um oficial de justiça, o estatuto do trabalho de um técnico de segurança social, etc... Isto, restringindo-nos à Administração Pública (AP).

Mais ainda, não há nem pode haver e nunca houve comparação entre o estatuto dos trabalhadores da AP e os estatutos, também entre si incomparáveis, dos trabalhadores do comércio, da indústria, dos transportes, da construção civil, do turismo, da banca, da limpeza, etc... E, entre estes, que também não têm comparação entre si, os estatutos do trabalho de um caixeiro, do de um repositor, do de um serralheiro, do de um afinador de máquinas, do de um motorista, do de um ajudante de motorista, do de um carpinteiro, do de um trolha, do de um recepcionista, do de um cozinheiro, do de um caixa, do de um gerente bancário, do de um cantoneiro, etc.

Aliás, rigorosamente, nunca houve, não há nem pode haver “comparação” entre estes estatutos profissionais na acepção de que não “não há nem pode haver” e nunca houve comparação entre qualquer trabalho, visto que, se bem que todos se comparem na igual dignidade profissional e social a reconhecer-lhes, qualquer trabalho se consubstancia em cada pessoa que o realiza.

Claro que, por razões de organização económica e social e, nesta, de reconhecimento e justiça social relativa quanto ao trabalho de cada um, são imprescindíveis, ainda que artificiais (como todas), categorizações e diferenciações.

Ora, se é certo que, conclusivamente, afirme essa incomparabilidade naquela citação inicial, o que intriga é que o Presidente não acrescentasse algo a propósito do que precede, visando assim prevenir o aproveitamento (com eventual distorção e enviesamento de interpretação) do seu texto a quem interessa agravar a fragmentação social pela acentuação do individualismo e corporativismo laboral que por aí já grassa ao nível profissional e mesmo institucional.

E intriga mais, porque, ao mesmo tempo, se bem que não o especificando, objectivamente, nega a “comparação” quanto a algo em que, pelo menos na AP, a situação actual dos estatutos profissionais é, mais do que “comparável”, a mesma: o congelamento das carreiras, citando ainda o Presidente da República, “o tempo de serviço suspenso, sacrificado pelas crises económicas vividas ao longo de muitos anos e muitos Governos”.

É certo que, perante alterações propostas pelo Governo, agora, em 30/7/2023, o Presidente já admitiu como “provável” a promulgação do diploma cujo veto da primeira versão se sustentou nas declarações citadas.

De qualquer modo, se não for a propósito dessa eventual promulgação, confiemos em que há sempre tempo, texto e pretexto para o sr. Presidente da República dizer e (se) afirmar mais qualquer coisa sobre o assunto.

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