Na catequese da JMJ, ensina-se a ser “mordomo” da natureza

Encíclica Laudato si’, de 2015, tornou imperativa a reflexão sobre a crise ambiental no seio da Igreja Católica. O “cuidado da casa comum” foi tema do primeiro dia de Encontros Rise Up.

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O “cuidado da casa comum” é um dos três temas centrais das catequeses da JMJ tiago bernardo lopes
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“Já tomaste o pequeno-almoço? Os Encontros Rise Up começam daqui a 30 minutos!” A mensagem na app Lisboa 2023 chega cedo de manhã, a apressar os peregrinos da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) para o primeiro de três encontros de catequese, que têm lugar em mais de 250 igrejas e outros locais na Área Metropolitana de Lisboa.

O tema do primeiro dia: a ecologia integral, ideia central da encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, sobre o “cuidado da casa comum”. Num mundo em que tantos jovens se mobilizam para proteger o planeta, como se posicionam os cristãos? Os católicos “precisam de ouvir falar” sobre as questões ambientais, responde Ryan Service, um dos mentores do grupo de jovens da Arquidiocese de Birmingham, no Reino Unido, que se deslocou à JMJ. “Estamos juntos no mesmo mundo, partilhamos a mesma realidade, temos as mesmas obrigações”, reconhece o sacerdote.

À porta da Igreja de São Nicolau, na baixa pombalina, o padre de 35 anos fala-nos sobre a convicção de que “temos que nos adaptar” à realidade de um planeta em mudança. “Algumas pessoas precisam de uma narrativa científica, outras precisam de uma narrativa religiosa para as ajudar a adaptar-se.” O desafio para a Igreja nos dias de hoje passa, assim, por encontrar o enquadramento certo para entrelaçar as preocupações climáticas na vivência das comunidades — algo para o qual a Laudato si’ contribuiu largamente, ao colocar a questão ambiental no seio da doutrina cristã.

A paróquia de Ryan Service, em Oxford, é mais envelhecida. “Quando falo sobre ambiente, algumas pessoas mais velhas talvez me respondam ‘Isso é secular’”, conta. Mas a encíclica Laudato si’ foi apenas mais um passo de uma longa missão de cuidado com “a casa comum”, que começa na Bíblia, desde o livro de Génesis, e que é preciso “traduzir” para um quotidiano em mudança.

Por exemplo, em Junho do ano passado, na semana do Dia Mundial do Ambiente, a paróquia do padre Ryan organizou uma missa em que todas as orações foram dedicadas a questões ambientais. Recriou-se, naqueles dias, uma espécie de floresta dentro da igreja, com várias árvores a decorar o templo, chamando a atenção dos fiéis para a ligação muito directa entre a “casa comum” da qual os cristãos são “mordomos” e a natureza que é preciso preservar.

“As pessoas mais jovens têm as suas preocupações e têm-nas partilhado com as mais velhas nas suas congregações”, descreve ainda o pároco de Oxford. Este diálogo intergeracional, remata, é um dos grandes desafios da “família” cristã que é preciso converter em oportunidade.

Catequese de diálogo

Baptizados de Rise Up, estes encontros de catequese, que na JMJ acontecem nas manhãs dos dias 2, 3 e 4 de Agosto, são dedicados a três temas do pontificado do Papa Francisco: a ecologia integral, presente na encíclica Laudato si'; a amizade social e a fraternidade universal da encíclica Fratelli tutti; e a misericórdia da carta apostólica Misericordia et misera.

Dos Encontros Rise Up — cujo nome bebe do lema da JMJ 2023, “Maria levantou-se e partiu apressadamente” —, lemos que são um “novo modelo” de catequese. Em que medida? O trabalho começou nas dioceses, muito antes da JMJ. “Os jovens puderam submeter as suas questões de forma anónima”, exemplificou Ryan Service. Com este modelo, a que a Igreja chama "sinodal", abre-se a oportunidade de perguntar questões complexas sem receio de julgamentos e, acima de tudo, “ouvir a resposta”. Este foi também, nota, um desafio para os clérigos.

“Neste último ano quisemos mudar um pouco o esquema das catequeses”, explicou Mariana Frazão, da Direcção Pastoral e de Eventos da JMJ 2023. Em conferência de imprensa, nesta quarta-feira, a responsável indicou que os Encontros Rise Up estão a acontecer em mais de 250 locais, com a participação de bispos e de grupos de animação, organizados por idiomas.

Houve ainda três encontros preparatórios, cada qual dedicado a um dos três temas, dos quais serão reunidos relatórios com os contributos trazidos pelos jovens. “Vimos de um processo, de um sínodo que quer dar voz aos jovens”, sublinhou Mariana Frazão, mencionando a oportunidade no contexto do Rise Up de os jovens “mostrarem à Igreja o que pensam”.

A responsável pela Direcção de Pastoral e Eventos Centrais da JMJ 2023 remete para um documento posterior à jornada as questões levantadas pelos jovens sobre o impacto ambiental do próprio evento, que implica viagens de pessoas de todo o mundo e uma pegada considerável em termos de consumo de recursos e gestão de resíduos.

Caminho mais verde?

Nos primeiros dias de agitação em Lisboa, foi possível encontrar esta preocupação entre os participantes. O jovem João Diogo Almeida, da diocese de Viseu, descreve mais cuidado na organização dos eventos da Igreja: “Onde vamos gastar, o que vamos utilizar, tentamos que seja o mais ecológico possível.” Reconhece que a sustentabilidade começou a ser uma questão importante nos últimos anos — e reconhece-se como “parte dessa revolução”, tratando-se de algo que “vai influenciar o nosso futuro”.

À entrada da Igreja de São Domingos, perto do Rossio, encontramos o jovem de 25 anos ao lado da mãe, Linda Almeida, que veio acompanhar o grupo de jovens “Cordas”, da Paróquia de Santa Maria de Viseu, em Gumirães. “Deus criou tudo, incluindo a natureza, e enquanto católicos funcionamos como administradores do que ele criou para nós”, afirma Linda.

O mesmo argumento é levantado pelo frei Francisco, de 29 anos, membro da Província Dominicana de Toulouse. “O Papa tem toda a razão em chamar a atenção para a ecologia integral. Na sociedade o descartável é rei”, lamenta o português, numa conversa à entrada da Igreja de São José, no Largo da Anunciada.

Recorda os ensinamentos de Tomás de Aquino, cuja relíquia do crânio foi trazida de Toulouse para Lisboa para a JMJ. “Só pode haver uma ecologia integral se se perceber a dupla finalidade da humanidade”, explica. Por um lado, “o bem comum, da cidade ou do país, onde se inclui o bem ambiental”, mas também enquanto “membro do cosmos, orientado para Deus”. Reforça, assim, que para a Igreja “a ecologia não é um fim em si mesmo”, mas uma forma de estar no mundo. “Não somos senhores do universo, somos administradores.”

De regresso à entrada da Igreja de São Nicolau, Aidan Lack, de 21 anos, convida-nos a participar na catequese e oferece-se para encontrar um lugar vago. No caminho para a JMJ, como é que o seu grupo, vindo de Birmingham, colocou em prática o cuidado da casa comum? Reduzir o desperdício ou procurar produtos de origem sustentável para os eventos na igreja foi um primeiro passo. A mudança passa também por reflectir sobre estas questões nos encontros de jovens, incluir o tema nas suas orações.

Estudante de Biologia Marinha, o jovem fala também sobre o diálogo entre as preocupações que traz dos seus estudos e as respostas que encontra na Igreja. Não vê, de todo, contradições entre religião e ciência, ao contrário da percepção que reconhece ainda existir. Recorda que “muitas das grandes personalidades católicas ao longo dos séculos foram cientistas”, uma tradição que acredita ser forte. E assegura: “A ciência e a religião podem seguir de mãos dadas.”

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