A tentar salvar a águia-caçadeira, uma cria de cada vez

Em Miranda do Douro, há crias em cativeiro prontas a serem libertadas e outras selvagens cujos ninhos são protegidos, para evitar predadores.

AGUIA CACADEIRA OU TARTARANHAO CACADOR EM MIRANDA DO DOURO
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AGUIA CACADEIRA OU TARTARANHAO CACADOR EM MIRANDA DO DOURO Adriano Miranda
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AGUIA CACADEIRA OU TARTARANHAO CACADOR EM MIRANDA DO DOURO Adriano Miranda
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AGUIA CACADEIRA OU TARTARANHAO CACADOR EM MIRANDA DO DOURO Adriano Miranda
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Ainda não são 8h30, mas sobre o capot da carrinha do biólogo Carlos Pacheco já se vão alinhando os cinco pequenos transmissores de GPS que ele está a acabar de preparar com Sara Palumbo. Dali a pouco, cada um deles vai ser instalado no dorso de cinco espécimes juvenis de águia-caçadeira, ou tartaranhão-caçador (Circus pygargus), uma das espécies de aves estepárias mais ameaçadas no país. Não vai ser preciso ir à procura das aves juvenis, porque, embora ainda não as tenhamos visto, elas estão a poucos metros dali, numa enorme “jaula” de estacas e rede metálica, parcialmente coberta por uma tela verde-escura que, mais do que impedir que nós vejamos as aves, as impedem de nos verem. Porque ninguém quer causar perturbação aos animais, para lá daquele que é obrigatório, quando os investigadores têm mesmo de se aproximar deles.

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A jaula de aclimatização está num terreno em pousio, de um agricultor que colabora há anos com a Palombar Adriano Miranda

As cinco aves juvenis (três fêmeas e dois machos) estão integradas no projecto Searas com Biodiversidade: Salvemos a Águia-caçadeira, que está a ser desenvolvido por vários parceiros, incluindo o Biopolis/Cibio — o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto e a Palombar — Conservação da Natureza e do Património Rural. Carlos Pacheco pertence ao primeiro, Luís Ribeiro, que dali a pouco vai entrar na jaula para recolher a primeira ave juvenil, à segunda.

Estamos em terrenos da Quinta do Cordeiro, em Miranda do Douro, e para chegar ao local onde está a desenvolver-se este processo de hacking (o termo inglês usado universalmente para este método em que animais selvagens são preparadas para o regresso à vida ao ar livre num espaço controlado como a jaula onde estão as aves) é preciso vencer um pequeno declive de terra que um carro normal não consegue subir.

O terreno pertence a um proprietário que há muito colabora com a Palombar e que permitiu que ali fosse instalada a jaula, numa área que está em pousio. A menos de um quilómetro em linha recta, diz Luís Ribeiro, fica a maior colónia de águia-caçadeira que já foi identificada por aquelas bandas, com 11 casais, o que teve uma grande influência na definição do local para construir a estrutura.

Censo de uma espécie em crise

O projecto Searas com Biodiversidade, que está no terreno desde o ano passado e termina este ano, tem várias componentes, entre as quais a realização do 1.º censo nacional da espécie. Os últimos dados conhecidos são do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e são uma estimativa que aponta para que, em dez anos, a população de águia-caçadeira no país tenha tido um declínio de 76%, um valor que sobe para 85% se olharmos apenas para o Alentejo, onde, por causa das searas que costumavam cobrir a paisagem, a ave era mais comum.

Os juvenis são retirados da jaula, para receberem o emissor de GPS Adriano Miranda
O caparão ajuda-os a ficar mais calmos enquanto a operação de colocação do GPS decorre Adriano Miranda
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Os juvenis são retirados da jaula, para receberem o emissor de GPS Adriano Miranda

A águia-caçadeira é uma estepária, como o sisão (Tetrax tetrax) ou a abetarda (Otis tarda), também em declínio gravíssimo, e, como elas, faz os seus ninhos maioritariamente nas searas. Por isso, tal como elas, está a ser afectada pelas mudanças profundas que a paisagem agrícola do país sofreu nos últimos anos, sobretudo no Sul, com a troca dos vastos campos de trigo ou centeio, pela produção intensiva de culturas como o olival, a produção de gado (sobretudo vacas) e de feno para o alimentar.

Carlos Pacheco diz que estas aves são apanhadas numa “dupla armadilha ecológica”. “Elas fazem os ninhos nos campos de feno, que é cortado em verde, em Abril e até início de Maio. As aves chegam no início de Abril, começam a instalar-se, fazem o ninho e é tudo ceifado. Como perdem esta primeira postura, vão procurar um local alternativo, nas searas que ainda houver, mas entram ali tarde e acabam por ter o mesmo problema”, diz. Para os cientistas, não há dúvidas de que esta é uma das principais razões para o declínio destas espécies e que pode pôr em risco a sua continuidade em território nacional.

Por isso, o trabalho que está a ser desenvolvido em Miranda do Douro é — não restem dúvidas — “uma medida para a situação de emergência em que estamos, não é para manter ad aeternum”, diz Carlos Pacheco.

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Os machos têm uma coloração mais acizentada enquanto as fêmeas são castanhas Adriano Miranda

Comparar comportamentos

Porque, além dos censos, cujos dados ainda estão em fase de compilação, o projecto Searas com Biodiversidade tem também a componente que levou à Quinta do Cordeiro os quatro investigadores (o quarto é Filippo Guidantoni, da Cibio): a de identificação de colónias, recolha de ovos que estejam em ninhos inviáveis, e protecção de ninhos em espaços selvagens.

A colocação de dispositivos de GPS, que esta manhã está confinada apenas aos espécimes juvenis da jaula, é também feita em crias em estado selvagem, já que uma das componentes do projecto é precisamente a de tentar compreender se há diferenças no comportamento das aves — tempo de voo, movimentações, modo de caçar —, que cresceram selvagens das que passaram pelo método de hacking no início da vida.

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As aves agitam-se assim que alguém entra na jaula Adriano Miranda
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E voam para o topo da jaula, afastando-se de quem lhes invade o espaço Adriano Miranda

“Já fizemos marcações no ano passado, mas marcámos poucos animais selvagens. Tivemos 11 aves em hacking e apenas três selvagens e destas só uma é que aterrou [após a migração], já que uma morreu pouco depois de sair do ninho e a outra foi predada. Este ano temos uma amostragem mais variada. Já marcámos oito selvagens e vamos marcar agora cinco de hacking. Por isso ainda é muito cedo para tirarmos conclusões”, diz o biólogo da Cibio.

Com os emissores de GPS prontos, Luís Ribeiro pega numa rede e prepara-se para abrir os diversos cadeados que mantêm a jaula bem trancada. Atrás de si, a colega da Palombar, Sara Palumbo, leva um frasco cheio de gafanhotos vivos, que vão ser deixados no interior da estrutura, para servirem de alimento às águias-caçadeiras.

Os cinco espécimes juvenis que ali estão foram recolhidos, ainda dentro dos ovos, de ninhos considerados inviáveis. Ou seja, se tivessem sido deixados onde foram encontrados, o mais provável é que nunca tivessem eclodido.

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Carlos Pacheco coloca o GPS com extremo cuidado e precisão Adriano Miranda
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Os gafanhotos são colocados na jaula, para servirem de alimento às águias-caçadeiras que lá estão Adriano Miranda

Os ovos foram levados para uma incubadora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), que também colabora no projecto, e por ali ficaram até eclodirem, e durante os primeiros 20 a 25 dias de vida das crias, que foram alimentadas primeiro com pinças e, aos poucos, começaram a aprender a recolher alimento por elas próprias.

Só no fim desse período é que foram transferidas para a jaula ao ar livre, onde permanecem por um período similar e podem treinar o voo e a caça, antes de serem libertadas. Estes jovens tiveram sorte: com eles, até este dia esteve uma ave adulta da mesma espécie, cedida por uma associação espanhola, uma espécie de “tutora” que os ajudou com “o processo de socialização”, explicam os investigadores.

O GPS não pode exceder 3% do peso da ave, nem atrapalhar os seus movimentos Adriano Miranda
As garras do juvenil agarram a tesoura que mantém as extremidades que seguram o GPS juntas, antes de serem cozidas com um fio de algodão Adriano Miranda
Os biólogos observam uma outra rapina que voa sobre o local e que poderia predar os ovos ou as crias da águia-caçadeira Adriano Miranda
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O GPS não pode exceder 3% do peso da ave, nem atrapalhar os seus movimentos Adriano Miranda

Apesar de visitarem a jaula diariamente, para deixar alimento, os investigadores só entram mesmo quando é imprescindível. A maior parte das vezes, recorrem a um tubo largo, que é introduzido por uma abertura na porta, fazendo deslizar para o interior os animais de que as aves se vão alimentar — insectos, sobretudo, pintos e ratos.

Mas esta terça-feira cada uma das aves terá de ser apanhada e levada até Carlos Pacheco, que, com cuidado e precisão, fixa ao dorso de cada uma delas, num ponto exacto entre as asas, os pequenos emissores que vão permitir à equipa recolher uma série de dados sobre os animais: por onde andam, a rota migratória que vão seguir, e, tudo correndo bem, aonde regressam no próximo ano.

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Com o emissor no dorso, o juvenil vai passar apenas mais uns dias na jaula, antes de ser libertado Adriano Miranda

Por isso, é mesmo preciso entrar na jaula e percebe-se que as aves não gostam muito da intrusão. De cada vez que a porta se abre, voam em todas as direcções, procurando a protecção da zona mais alta da estrutura, fixando as garras nas redes. Mas, mesmo assim, uma a uma é levada para o exterior, onde a colocação de um caparão, que lhes tapa os olhos, permite que a operação decorra de forma tranquila, antes de serem devolvidas à jaula.

“O resgate de ovos não se faz de ânimo leve”, explica Carlos Pacheco. Aliás, os dois investigadores dizem ser apologistas de um processo que não é o que é habitualmente seguido noutras operações de hacking, nomeadamente as que são desenvolvidas pelo ICNF, em que todos os ovos de um ninho em risco são recolhidos. “Parece-nos crítico que haja sucesso reprodutor na colónia, porque sabemos que se perderem muitas posturas, as aves vão para outro lado. O que defendemos é que, se houver quatro ovos, se protejam dois e se deixem os outros. A artificialização total não tem muito futuro”, defende.

No Norte do país, o único local onde a águia-caçadeira nidifica em searas é nesta região do planalto mirandês Adriano Miranda
O ninho com duas crias com cerca de uma semana está escondido numa seara de trigo e aveia Adriano Miranda
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No Norte do país, o único local onde a águia-caçadeira nidifica em searas é nesta região do planalto mirandês Adriano Miranda

Crias na seara

Com os GPS colocados e a águia-caçadeira adulta retirada para ser devolvida à UTAD, antes de regressar a casa em Espanha, ainda há tempo para ir espreitar dois ninhos selvagens na freguesia de Ifanes. Um deles está instalado numa seara de trigo e aveia, de um proprietário que aderiu às medidas agro-ambientais existentes, ou seja, que recebe uma compensação por proteger os ninhos das estepárias. O outro foi descoberto por acaso, explica Luís Ribeiro. Está numa mancha de mato junto à seara e foi detectado quando a equipa viu a fêmea levantar voo, quando andava por ali.

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As duas crias com cerca de uma semana estão num ninho protegido pelo projecto Adriano Miranda

Esta manhã, lançam um drone para ver se os ovos deste segundo ninho já eclodiram. Querem protegê-lo, como fizeram com o primeiro, colocando uma vedação de rede, mas é demasiado arriscado fazê-lo antes de as crias nascerem, porque os progenitores podem abandonar o ninho. Como ainda não houve eclosão, o ninho é deixado sossegado por mais uns dias.

Já no ninho em plena seara, há duas crias com cerca de uma semana, abrigadas do sol sob o cereal. Perto delas, dois outros ovos não chegaram a eclodir e são dados como perdidos.

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O topo da protecção do ninho selvagem, inclinado, é uma novidade, e ajuda a impedir o acesso de predadores terrestres Adriano Miranda

Uma a uma, cria a cria, a equipa está atenta para tentar que a águia-caçadeira não desapareça daqui. Seja com o hacking, a sensibilização dos agricultores — a espécie é boa para as searas, porque se alimenta de ratos e insectos que as podem prejudicar —, um melhor conhecimento da gestão dos campos, para ver que espécies atrai e o que pode ser melhorado, e o acompanhamento das aves que a partir de agora estão sob o radar permanente da equipa. E ainda poderá haver mais animais a passar pela jaula, fruto de uma segunda postura.

Luís Ribeiro aproxima-se do ninho protegido por uma rede no início da semana Adriano Miranda
Dois ovos não chegaram a eclodir e são dados como perdidos Adriano Miranda
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Luís Ribeiro aproxima-se do ninho protegido por uma rede no início da semana Adriano Miranda

No ano passado, diz Luís Ribeiro, foram libertados 27 indivíduos da jaula de aclimatação, mas este ano o número é menor, porque foi possível “manter mais ninhos em meio selvagem”. E esse é o grande objectivo de todos os que querem que a espécie continue a existir no país.

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Uma águia-caçadeira levanta voo do ninho assim que sente alguém aproximar-se e fica a pairar, à espera que nos afastemos Adriano Miranda

Os dados do censo, que deve estar concluído até ao final do ano, vão traçar um retrato fidedigno da espécie no território, o que ajudará a perceber o que é preciso fazer para a salvar. Por enquanto, os investigadores registam uma pequena surpresa: tudo indica que há mais casais a nidificar em matos do que a equipa esperava. Algo que acontece de forma dispersa pelo Norte e Centro do país, em serras como o Gerês, Arada, Fafe, Marão, Estrela e Montesinho.

No Sul, a águia-caçadeira só nidifica em área agrícola e, no Norte, a única zona agrícola onde isso acontece é neste território, entre Mogadouro, Mirandela, Vimioso e Miranda do Douro. Preservá-la é uma batalha que está só a começar.