Transportes públicos gratuitos não são um milagre

De repente, há capacidade para reforçar os transportes públicos e torná-los gratuitos. Para as populações? Não! Para os peregrinos da Jornada Mundial da Juventude...

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Depois de meses de profunda confusão nos transportes em Portugal, ficamos a saber que durante as Jornadas Mundiais da Juventude os transportes públicos serão gratuitos para os peregrinos. O que é sempre rejeitado como impossível é, claro, não só possível, como vai acontecer. Implementar transportes públicos gratuitos de forma permanente é essencial para travar a crise climática.

Foram várias as greves nos transportes públicos ao longo deste ano. Aos trabalhadores continuam a não ser dadas condições de trabalho e salariais. Os trabalhadores dos bares e serviço de bordo dos comboios da CP estiveram mais de dois meses sem receber salários, forçados a acampar em luta pelos seus direitos, ao longo de 54 noites. O caos nos transportes públicos urbanos e inter-cidades acentuou-se. O investimento nos transportes públicos continua insuficiente e incapaz de reduzir o impacto daquele que é o setor com maior nível de emissões de gases com efeito de estufa em Portugal.

Nas vésperas do início da Jornada Mundial da Juventude, o Governo apresenta o Plano de Segurança e Mobilidade, anunciando um reforço nos transportes públicos – mais 354.000 lugares de dia 1 a 4 de Agosto, incluindo reforço rodoviário, comboios, metro, metro de superfície e barcos, e um total de mais 780.000 lugares nos dias 5 e 6. Descobrimos então que, não só há capacidade para reforçar os transportes públicos, mas também para os tornar gratuitos. Para as populações? Não. Para os peregrinos da Jornada Mundial da Juventude...

Afinal, será preciso um milagre para termos transportes públicos gratuitos? Não. É preciso vontade política. Mas, aparentemente, a vontade política vem na forma de um passe especial para peregrinos, enquanto estações de metro e comboio são cortadas para as pessoas que trabalham e vivem na cidade. Se já é difícil nos movermos em Lisboa, o Governo e a Câmara Municipal de Lisboa tiveram a audácia de anunciar que durante estes dias nos vamos deparar com várias estações fechadas e terminais relocalizados. Também as bicicletas e trotinetas estarão proibidas de circular em algumas zonas da cidade. Dir-se-ia que havia alguma emergência, algo urgente, uma crise existencial.

O que nos dizem é que os transportes serão mobilizados, reforçados e repensados para dar resposta, não às necessidades das populações, não à urgência da crise climática, mas sim à vinda do Papa e dos peregrinos que o vêm ver.

O plano que está a ser apresentado é um plano de intervenção do Estado que nos mostra que querendo, é capaz de agir quando identifica algo como prioritário. Mas as prioridades estão erradas e têm de ser condenadas à luz da crise climática e social em que vivemos. As pessoas e o planeta são a prioridade!

As Jornadas Mundiais da Juventude não são uma emergência, mas a crise climática é. Investir num serviço de transportes públicos renováveis e gratuito tem de ser uma prioridade. Este serviço deve servir as pessoas e as várias regiões do país, deve ser capaz de reduzir drasticamente a necessidade de utilização de transporte individual e deve garantir empregos de qualidade.

O setor dos transportes deve ser pensado e gerido na ótica do serviço público e da mitigação das alterações climáticas. Tal passará pelo enorme investimento na ferrovia, incluindo a eletrificação e modernização das linhas existentes; a criação de novas linhas de alta velocidade; a reativação de linhas abandonadas e construção de linhas novas; assim como a organização dos portos e zonas industriais, com vista à criação de núcleos logísticos de comboios.

Este serviço pode empregar milhares de pessoas em Empregos para o Clima dignos e de qualidade. Vários são os ex-trabalhadores da antiga refinaria da Galp em Matosinhos que vêm, há quase dois anos, reivindicando formação para serem empregados como maquinistas da CP, por exemplo. Estes foram despedidos sem qualquer plano de Transição Justa, muitos procuram ainda respostas e soluções. Estas são pessoas que já vivem em estado de emergência e a merecem os seus direitos e rendimentos assegurados, formação e acesso a Empregos para o Clima – que não só queremos como necessitamos. Não é preciso um milagre para que o tenham.

Este pode ser o verão mais fresco do resto das nossas vidas. Ainda vamos a meio e o recorde do dia mais quente de sempre foi batido quatro vezes na mesma semana. A crise climática é uma emergência. Transportes públicos gratuitos para todas as pessoas não é um milagre, mas sim uma necessidade.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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