Não há dados sobre a água a entrar e a sair do Guadiana: o caminho para um “desastre sem remédio”

Entre Janeiro e 20 de Julho, a APA não publicou o volume de água que entrou em Portugal durante 41 dias e os caudais lançados no troço internacional do rio não foram divulgados durante 72 dias.

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Vista aérea do drone da cascata do Pulo do Lobo com o rio Guadiana LuisPina/GettyImages
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Continua a faltar informação sobre monitorização dos caudais que entram e saem do Guadiana. Entre Janeiro e 20 de Julho, a APA não publicou o volume de água que entrou em Portugal durante 41 dias e os caudais lançados no troço internacional do rio não foram divulgados durante 72 dias.

Apesar das constantes promessas de melhorar a divulgação pública dos dados sobre os caudais do rio Guadiana, a falta de informação aos cidadãos prevalece num quadro climático em que a escassez de recursos passou a ser uma preocupação constante.

Na consulta que o PÚBLICO faz regularmente à página online da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA), entre 1 de Janeiro e 20 de Julho, às estações automáticas do Serviço Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH), não apresentaram com frequência diária as massas de água libertadas a partir do Açude de Badajoz para o curso do Guadiana em território português. E no troço do Guadiana internacional entre a antiga aldeia mineira do Pomarão e a foz do rio em Vila Real de Santo António, a omissão de dados foi ainda mais acentuada.

Assim, os valores sobre o volume de caudais do rio Guadiana que passaram na estação instalada no Monte da Vinha já em território português não foram publicados na página da EDIA, pelo menos, durante 41 dias. E os débitos lançados no trecho do Guadiana internacional foram omitidos durante 72 dias.

Além da lacuna de dados já referida, há ainda a registar, na estação do Monte da Vinha e durante a segunda metade do mês de Junho e início de Julho, 11 dias com caudal zero ou abaixo do valor mínimo de 2 metros cúbicos por segundo, acordado com as autoridades espanholas para o rio Guadiana.

A informação veiculada pelo SNIRH significa que houve incumprimento por parte das autoridades espanholas nas descargas efectuadas a partir do Açude de Badajoz, mas os dados facultados pela Confederação Hidrográfica do Guadiana (CHG), entidade que gere a bacia do rio ibérico em território espanhol, no mesmo período de tempo, apresenta valores superiores a 2 metros cúbicos.

A estação do Monte da Vinha localiza-se a uma distância inferior a 10 quilómetros do Açude de Badajoz e a informação que a CHG transmite sobre o volume de massas de água enviadas para Portugal apresenta sempre valores superiores aos registados na estação do Monte da Vinha.

Às discrepâncias nos débitos chegados a Portugal a partir de Badajoz, praticamente os únicos que abastecem a albufeira de Alqueva, junta-se a falta de informação do volume de caudais que são lançados no troço do Guadiana internacional. Trata-se de uma massa de água que tem estado sujeita a forte disputa por parte das autoridades espanholas que há mais de duas décadas captam ilegalmente água mesmo na linha que delimita a fronteira entre os dois países ibéricos.

Quase 40 anos a bombar água sem justificação

Várias são as estimativas para os volumes que continuam a ser captados a jusante da barragem do Chança, antes de este rio desaguar no Guadiana. Em meados dos anos 70 do século passado, foi instalado um sistema que bombeia e transvasa pelo canal Boca-Chança um volume de água que se presume possa chegar até 75 hm3/ano (mas já foram avançados montantes que superam os 150 e até os 200 hm3.

O sistema de bombagem foi instalado, alegando as autoridades andaluzes a necessidade de satisfazer o abastecimento para a agricultura, turismo e agricultura na província de Huelva, durante o período de construção da barragem do Chança, cujas obras terminaram em 1985. Desde então, as captações têm continuado sem interrupções.

No documento elaborado pelas autoridades espanholas para o terceiro ciclo de planeamento da bacia do Guadiana, equivalente aos planos hidrográficos para os rios portugueses, salienta-se que uma das questões identificadas por Espanha na bacia do Guadiana, “transferências de água à margem da lei”, justifica uma tomada de decisão.

Neste momento, decorrem obras no canal de Granado e no túnel de São Silvestre, que delimita a bacia do Guadiana e a de Piedras, para encaminhar a água captada no Boca-Chança com destino à região de Huelva, que este ano está a suportar uma escassez hídrica que já apresenta contornos dramáticos.

Também Portugal já tem em elaboração um projecto para levar 75 hm3 de água do Guadiana, junto ao Pomarão, para a barragem de Odeleite no Algarve. E esta procura de água a partir da reserva de Alqueva é questionada por João Cavaco Rodrigues, presidente da Associação de Proprietários e Beneficiários de Alqueva (APBA).

No documento que a organização endereçou ao Ministério da Agricultura e Alimentação e a que o PÚBLICO teve acesso, é salientada a preocupação dos agricultores da APBA: “Avançar com mais área de regadio no EFMA (Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva) e autorizar outras captações, que dependam da água de Alqueva, como é o caso de levar a água para o Algarve e para Espanha, sem antes se fazerem as obras já identificadas e estudadas para se aumentarem as reservas de água, vai rapidamente conduzir o EFMA a um desastre sem remédio."

E acrescentam: "A água não vai chegar e o grande projecto de Alqueva vai colapsar devido à estratégia e à incompetência de quem nos governa o maior lago artificial da Europa não será capaz de satisfazer todas as solicitações que este Governo lhe quer impor.” É neste contexto que a falta de informação alimenta a especulação sobre a utilização dos recursos hídricos de Alqueva.

O PÚBLICO solicitou à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) esclarecimentos sobre as falhas de informação e de monitorização sobre os caudais entrados e saídos do Guadiana, mas até ao fecho da edição não obtivemos resposta.