Habituamo-nos a um mundo onde a publicidade ao tabaco é proibida, mas basta recuar três décadas para percebermos o longo caminho que trilhamos até aqui. Recordo-me de, ainda criança, ver o piloto brasileiro Ayrton Senna (1960-1994) a conduzir um carro de Fórmula 1 com o logótipo de uma marca de cigarro. Achávamos normal. Hoje ficaríamos escandalizados ao ver um desportista a promover algo que vicia, provoca doenças e pode matar. Ainda que muitos carreguem nos ombros, nas suas camisolas, nomes de casas de apostas ou marcas de bebidas.

Foi precisamente este sentimento de indignação que António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, procurou convocar esta quarta-feira, em Nova Iorque, num discurso para assinalar o Dia do Ambiente. "Muitos governos restringem ou proíbem a publicidade a produtos que prejudicam a saúde humana, como o tabaco", afirmou, apelando em seguida "todos os países" a proibir a publicidade proposta por empresas de combustíveis fósseis.

António Guterres não parou por aí. O responsável máximo das Nações Unidas também exortou "os meios de comunicação social e as empresas de tecnologia a deixarem de aceitar publicidade a combustíveis fósseis" e, dessa forma, a não permitirem mais a "destruição do planeta" em troca de dinheiro publicitário.

"Os padrinhos do caos climático - a indústria dos combustíveis fósseis - obtêm lucros recorde e banqueteiam-se com milhões de biliões de subsídios financiados pelos contribuintes", justificou Guterres, lembrando que não é aceitável "um futuro em que os ricos estão protegidos em bolhas de ar condicionado, enquanto o resto da humanidade é fustigada por condições meteorológicas letais em terras inabitáveis".

O paralelo que Guterres estabelece entre o tabaco e os combustíveis fósseis faz sentido. E o mesmo se pode dizer da proibição de anúncios ou patrocínios vindos de empresas ligadas ao petróleo, gás ou carvão. Um grupo internacional de médicos publicava nas nossas páginas, esta semana, um artigo de opinião reivindicando exactamente isso: a urgência de mobilizar a União Europeia para proibir a publicidade a combustíveis fósseis, a exemplo do que se fez há mais de duas décadas relativamente ao tabaco.

"A poluição atmosférica causada pelos combustíveis fósseis já mata uma em cada cinco pessoas em todo o mundo, o que levou a 8,7 milhões de mortes prematuras em 2018", lê-se no texto, que tem como co-autor o médico português Luís Barreto Campos, presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente (CPSA).

A queima de gás, carvão e petróleo constitui uma ameaça hoje não só porque está a encher a única atmosfera de que dispomos com carbono – o que faz com que a temperatura global suba, aumentando a frequência e a intensidade de fenómenos climáticos extremos –, mas também porque gera poluição. E esse ar carregado de poluentes, ao ser respirado, pode ser tão nocivo como o tabaco.

"Dependendo do local onde se vive, pode-se estar a ‘fumar’ até um maço de cigarros por dia ou mais só por respirar. Também na Europa este é um problema enorme: cada habitante polaco, incluindo as crianças, ‘fuma’ em média dez cigarros por dia ao respirar ar poluído, e em cidades como Amesterdão e Paris a média é de seis", lê-se no artigo de opinião.

Com estes dados na mão, talvez muitos de nós reservem um olhar mais atento, crítico até, ao espaço mediático que os combustíveis ocupam na nossa esfera cultural. Ofereço um exemplo: há um quarto de século, a selecção portuguesa de futebol tem como patrocinadora oficial uma petrolífera. Hoje achamos normal. Quando ficaremos escandalizados?