Havia passado mais de um ano

Se for ao asilo, é para lhe dizer isto tudo, a estúpida da Sãozinha não ficará a rir, sou a irmã mais velha, tem de me respeitar.

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Havia passado mais de um ano desde o dia em que a Sãozinha fora deixada no asilo. Nem o pai nem a irmã a visitaram e as memórias que a Sãozinha tinha do lar foram-se desvanecendo. A Esperança começou a reagir à sua condição, que inicialmente era claramente positiva, comparada à da irmã, para passar a ser entendida como negativa: a Sãozinha, pensava ela, está a aprender a ser criada, e eu? Fico a limpar a casa e a cozinhar e a coser, nunca hei-de trabalhar numa casa rica, a Sãozinha vai ter tudo e eu nada, é injusto, porque é que ela há-de ir aprender a servir com as religiosas e eu não? A estúpida da Sãozinha vai subir na vida e eu vou ficar aqui a varrer e a engomar, a lavar cuecas e a amanhar hortaliças, a estúpida da Sãozinha tem uma vida santa, não faz nenhum, é andar a rezar, aprender a servir e pouco mais, e eu fico para aqui, num canto qualquer, a cheirar a lareira, enquanto a estúpida da Sãozinha vai trabalhar para a casa duns franceses e vai andar com um caniche ao colo como aquelas madames se passeiam na Avenida da Liberdade. Se for ao asilo, é para lhe dizer isto tudo, a estúpida da Sãozinha não ficará a rir, sou a irmã mais velha, tem de me respeitar.

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