Eles começaram a fumar shisha para fugir dos cigarros — mas a troca não é mais segura

Há quem a veja como um “ritual de sexta-feira”, como ir beber um copo, ou como uma forma de deixar ou “evitar os cigarros”. O consumo de tabaco shisha aumentou 83,7% em Portugal, entre 2015 e 2020.

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Em Portugal, o consumo de tabaco shisha aumentou 83,7%, entre 2015 e 2020. NELSON GARRIDO
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Entre duas poltronas, numa mesa de vidro, está pousado o cachimbo de água. Se a decoração não revela, o cheiro doce que nos atinge mal entramos mostra de imediato que estamos num bar de shisha. Os tons escuros das paredes e as luzes remetem para um espaço de diversão nocturna, e entre amigos há quem fume shisha como quem sai para tomar um café.

Fumada num cachimbo de água, também conhecido como narguilé, a shisha é um tipo de tabaco que tem uma grande variedade de sabores, desde coco, menta e frutos vermelhos a Red Bull. Em Portugal, o consumo de tabaco shisha passou dos 22.039 quilogramas em 2015 para os 187.293 quilos em 2020, um aumento de 83,7%, segundo dados da Autoridade Tributária e Aduaneira. Foi o único que aumentou significativamente, já que em 2020 as introduções ao consumo de tabaco registaram um decréscimo relativamente a 2019, com excepção do tabaco para cachimbo de água (+83,7%) e do tabaco para cigarros de enrolar (+5,4%).

Luís tem 18 anos e vem ao Lounge nr1, no Porto, pelo menos uma vez por mês. Nasceu em França, onde aos 14 anos fumou pela primeira vez um cachimbo de água numa festa. Está em Portugal há dois anos e já levou todos os amigos a experimentar shisha pelo menos uma vez. Nunca experimentou um cigarro, que considera ser “mais forte e mais perigoso”.

Noutro canto do bar, Leonardo Mariano fuma com uma amiga ao lado, que não inala o fumo do tubo longo que sai do cachimbo de água. Experimentou narguilé pela primeira vez aos 18 anos numa festa de aniversário. Tem 28 anos e nasceu no Brasil, onde fumava socialmente. Desde que chegou a Portugal fá-lo “para relaxar”, quase todo os dias. Garante que o “ajuda com a ansiedade” e o “impede de entrar no vício do cigarro”.

No piso inferior do lounge, Hélder Rocha prepara as shishas como quem prepara um cocktail, ao balcão. Os preços começam nos 22 euros e o processo começa por se colocar tabaco na cabeça do cachimbo. Dependendo do que o cliente desejar, pode ser feita uma mistura de essências diferentes para alcançar um “sabor mais doce, mais fresco ou mais ácido”.

Hélder Rocha prepara as shishas como quem prepara um cocktail NELSON GARRIDO
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Hélder Rocha prepara as shishas como quem prepara um cocktail NELSON GARRIDO

Um cachimbo de água tem diferentes partes: a base (onde é colocada água), a cabeça (onde é posto o tabaco), um corpo (uma estrutura que sustenta a cabeça e a liga à base), e uma mangueira por onde se inala o fumo. O tabaco é colocado na cabeça da shisha, que pode ser de argila, vidro ou silicone e com um pequeno furo no meio, para circular melhor. De seguida, é colocado um gestor de calor, com dois carvões, e o cachimbo está pronto. “Tornou-se um ritual como ir beber um copo à sexta”, comenta Hélder Rocha, que trabalha com narguilé há cerca de dez anos.

Abrir um bar de shisha

Anastacia Shatsskaia é gerente e co-proprietária do Lounge Nr 1, onde a maioria dos clientes são portugueses e têm entre 18 e 30 anos. Quis criar “um espaço de nível premium”, à semelhança dos que existem na Rússia e na Geórgia, onde é normal que “uma pessoa de fato e gravata” chegue a um espaço, “abra o seu MacBook, peça uma shisha e faça uma reunião enquanto fuma uma”. As pessoas menores de idade ficam à porta, garante — apesar de muitas tentarem entrar.

Nos países onde fumar shisha é visto como uma actividade social importante, como a Turquia, nos Emirados Árabes Unidos (especialmente no emirado do Dubai), o Egipto e Marrocos, “cada marca tem 20 ou 30 sabores” e “uma percentagem diferente de nicotina”. Em Portugal, é difícil ter uma variedade de marcas e sabores porque é “regularizada a percentagem certa de nicotina que o tabaco pode ter”, explica Anastacia Shatsskaia, que desistiu de tentar importar marcas da Rússia.

Um cachimbo de shisha em casa

A primeira vez que Adriana Terroso, de 21 anos, fumou durou quase três horas, entre bebidas e conversas, num bar em Vila do Conde. Antes de experimentar também perguntou ao Google se fumar shisha fazia pior do que fumar um cigarro, mas não encontrou uma resposta certa. Tinha a ideia errada de que o cachimbo de água parecia “algo mais natural” e por isso poderia não ter efeitos tão negativos ou ser tão viciante como outras formas de fumar tabaco.

Ainda são poucos os dados relacionados com o consumo de shisha em Portugal e é difícil saber quantos estabelecimentos existem no país. Os indicadores mais recentes, do último Inquérito Nacional de Saúde com dados de 2019, mostram que 15% dos jovens entre os 12 e os 18 anos já tinham experimentado.

O relatório apontava que 22% dos jovens dos 12 aos 18 anos já experimentaram fumar novos produtos de nicotina, como cigarros electrónicos e cachimbos de água, um valor que se aproxima dos 29% dos cigarros convencionais. Relatava ainda que, apesar de se ter notado uma descida positiva do consumo de cigarros, houve um aumento expressivo no de tabaco para cachimbo de água e cigarros electrónicos.

José Reis Ferreira, médico da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, afirma que o cachimbo de água surgiu “com o objectivo de filtrar o fumo do tabaco”, mas que não é mais seguro. Segundo o pneumologista, a “máscara dos sabores” é um problema de produtos como a shisha, pois incluem mais substâncias que os cigarros convencionais e, consequentemente, trazem mais factores de risco inalatório. O médico menciona também os problemas de intoxicação que podem surgir dos longos períodos em que as pessoas inalam o fumo e os factores de infecção associados à passagem do bocal do cachimbo de boca em boca.

De acordo com a British Heart Foundation, o consumo de narguilé pode aumentar o risco de desenvolvimento de doenças cardíacas e de circulação. Tal como outros tipos de tabaco, pode viciar, causar cancro, infecções respiratórias e intoxicações. Quem fuma shisha pode inalar substâncias como a nicotina, arsénio, monóxido de carbono e carvão vegetal. Numa sessão entre 20 e 80 minutos, pode ser inalada uma quantidade de fumo equivalente ao consumo de 100 cigarros, escreve a fundação do Reino Unido.

José Reis Ferreira tem a percepção de que há um maior consumo de tabaco de narguilé e de lojas que o fornecem, porém “ninguém aponta para uma prevalência ainda concreta”. O consumo do cachimbo de água pode ser especialmente atractivo “por causa do ar exótico e das cores”, alerta o médico, que chama também a atenção para a desinformação e para “consumos sobrepostos e cruzados” dos mais novos. Em 2019, entre os jovens dos 13 aos 18 anos, os cigarros foram o tipo de produto mais referido por quem já experimentou (29,3%), seguido dos cigarros electrónicos (22,2%) e só depois do cachimbo de água (15%).

Ao contrário da Europa, onde a tendência é o aumento do consumo, os governos dos países africanos têm apostado em leis proibitórias, por “constituir um atentado à saúde pública”. O cachimbo de água foi proibido em países como Angola (2023), Tanzânia (2018), Ruanda (2017), Gana (2018) e Mali (2022). Contudo, os motivos para as restrições do consumo variam de país para país. Nos Camarões, por exemplo, o consumo foi banido em 2022, após um estudo realizado pelo Ministério da Saúde revelar que 46% dos jovens fumavam a substância.

Na cultura portuguesa, onde fumar shisha não é um ritual, o consumo acontece sobretudo entre amigos que, de forma ocasional, rodeiam um cachimbo de água. Alcindo Silva, de 25 anos, fez uma breve pesquisa antes de se deixar levar pela curiosidade. Alguns anos depois, o estudante da Escola Superior de Artes e Design, em Matosinhos, comprou um cachimbo ao dono do bar que costumava frequentar, começou a fumar em casa e deixou os cigarros. “A shisha não sabe tão mal”, justifica-se, e a “estética mais apelativa” dos espaços tem levado mais pessoas a experimentarem.

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