Portugal é o paraíso dos agentes e recrutadores sem escrúpulos

Portugal é um autêntico entreposto de jogadores, o paraíso dos agentes e recrutadores sem escrúpulos, bem como das redes criminosas ligadas ao tráfico de seres humanos.

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Como tanta coisa que acontece no nosso país, as reformas estruturais normalmente seguem o fluxo da mediatização dos casos e, infelizmente, quase nunca se antecipam aos mesmos. Desconhecendo, nesta data, quais os próximos capítulos na novela do combate ao tráfico, auxílio à imigração ilegal e burlas no futebol, continuo esperançoso de que alguma coisa mude na resposta articulada que se exige do Estado, em primeira linha, e das organizações desportivas.

Está na ordem do dia a notícia das buscas realizadas pelo SEF, o alegado envolvimento de Mário Costa, presidente da AG da Liga e o modus operandi da empresa “BSports Academy", num caso com contornos ainda por conhecer, mas que já impressiona pelo número de atletas, menores, envolvidos.

Custa-me acreditar, sem entrar na discussão sobre o alcance e eficácia da proibição imposta pela FIFA para as transferências internacionais de menores, que ainda haja quem não compreenda o quão errado é retirar um menor de idade do seu âmago familiar e querer que, numa idade em que deve divertir-se com os amigos, estudar e ter uma vida repleta das experiências normais de qualquer criança, lhe seja vendido directamente, ou através dos seus pais, o sonho de que com a mudança de país e o foco diário no futebol abrirá a porta da elite do futebol mundial. Nesta indústria existem muitos “beneméritos”, que trabalham pelos miúdos e apenas cobram uma modesta quantia aos pais e familiares por tão generosa oferta.

Voltando ao caso “BSports Academy”, como seria de esperar, além do silêncio ensurdecedor de vários quadrantes do sector desportivo, foram duas as mensagens passadas, de imediato, à comunidade: presunção de inocência e respeito pelo segredo de justiça, na confiança de que a investigação criminal fará o seu trabalho. Nada mais óbvio, num Estado de direito democrático, mas, ainda assim, uma oportunidade perdida para questionar a hipocrisia colectiva em que vive o futebol português.

Sejamos honestos, Portugal é um autêntico entreposto de jogadores, o paraíso dos agentes e recrutadores sem escrúpulos, bem como das redes criminosas ligadas ao tráfico de seres humanos, que apostam nos clubes locais e com pouca visibilidade, que se prestam a ser “barrigas de aluguer”, qual laboratório de talento para testar as qualidades futebolísticas dos jovens recrutados.

O Sindicato dos Jogadores reclama há anos por uma resposta articulada do Estado e das organizações desportivas, sem a qual o verdadeiro apoio às vítimas está condenado, como tantas vezes aconteceu, ao fracasso. Nos últimos anos apoiámos financeiramente com estadia, alimentação e voos de regresso aos respectivos países de origem dezenas de jovens, brasileiros, argentinos, colombianos ou provenientes de países do continente africano como a Nigéria, o Gana ou a Guiné. Em comum, tinham o facto de terem entrado em Portugal de forma irregular, com a promessa de um contrato de trabalho, habitação e alimentação garantida num clube, acabando a viver em condições miseráveis ou ao abandono.

Perante o drama do abandono, chegámos a ter respostas de programas de repatriamento a informar que o financiamento do retorno voluntário de jogadores, a dormir na rua, demoraria três meses a ser concluído, ou serviços sociais a dizer que não existe outra solução que não a chamada para o 144, linha nacional de emergência que apoia pessoas em estado de necessidade e situação de sem abrigo. Mais uma vez o futebol, a indústria dos milhões de euros, a não ter uma única resposta social, articulada, para o problema.

Isto a somar à frustração de ver processos-crime em “águas de bacalhau”, isto é, na fase de inquérito há anos, sem saber o que fazer mais para promover diligências no sentido de identificar, recolher prova e dar um desfecho, seja ele qual for, às queixas apresentadas pelas vítimas.

Ciente de toda esta miséria, convoquei o anterior secretário de Estado da Juventude e Desporto, João Paulo Rebelo, para o problema, apelando à urgência de criar canais céleres e uma resposta articulada entre o Estado e as organizações desportivas na resposta às vítimas, muito em particular aqueles que não reúnem os pressupostos de qualificação da sua situação como tráfico humano, para o qual existem, pelo menos, redes regionais de apoio às vítimas a actuar no nosso país. De uma única reunião realizada com todos os potenciais envolvidos na solução - FPF, SEF, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Alto Comissariado para as Migrações, Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Justiça e Gabinete da Secretaria de Estado da Acção Social -, nada de substancial aconteceu.

Existem respostas sociais que têm de ser criadas, mas o sindicato tem também propostas e medidas concretas que entende poderem fazer a diferença. Destaco apenas três. Em primeiro lugar, o manual de entrada e acolhimento do jogador brasileiro, que vamos lançar na próxima época desportiva. Em segundo lugar, defendemos a criação de uma plataforma online (SOS Futebol), em formato de observatório, que garanta a partilha de toda a informação, notícias, legislação e jurisprudência, mecanismos de denúncia e respostas sociais, a fim de poder acolher, num só espaço, a informação relevante para lidar com este tema. Finalmente, à semelhança das redes regionais de combate ao tráfico de seres humanos, defendemos a criação de redes locais de âmbito desportivo, para auxílio a atletas vítimas de tráfico, auxílio à imigração ilegal e burla.

Destaco o papel fundamental das associações distritais de futebol e das autarquias, nomeadamente o pelouro do desporto, que têm contacto com a base do futebol local, conhecem os dirigentes e, portanto, têm o dever de sinalizar os casos suspeitos e manter a vigilância. Lamento profundamente que numa matéria tão importante, que envolve o direito à infância e o respeito por direitos humanos, o meu país continue a ser um misto de inércia, revolta circunstancial sempre que existe uma notícia com maior destaque mediático e sentimento de impunidade para aqueles que lucram impunes com estas práticas criminosas.

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