Cidades-esponjas? Espaços verdes? Podemos chamar os jardins pelos nomes

Neste 25 de Maio, celebra-se pela primeira vez o Dia Nacional dos Jardins, instituído graças ao esforço de alunos de Portimão que escolheram a data do aniversário do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles.

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Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa DANIEL ROCHA
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Jardim Botânico do Porto Nelson Garrido
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Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa RUI GAUDENCIO
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Parque da Cidade, em Matosinhos (Porto) Paulo Pimenta
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Jardim do Palácio dos Biscainhos, em Braga PAULO PIMENTA
Água
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Jardim Botânico Universidade de Coimbra Sergio Azenha
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Tudo começou numa aula de Carlos Café, professor de Filosofia da turma 10.º L da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. “Olhem, este senhor foi um herói”, desabafou o docente numa aula de Educação para a Cidadania, poucos dias depois da morte de Gonçalo Ribeiro Telles, em Novembro de 2020. Descrevendo o arquitecto paisagista como um visionário, Carlos Café aproveitou para inspirar a turma com um pouco de música: Heroes, de David Bowie. “We can be heroes/ just for one day”, entoava a canção.

Deixou então o desafio aos alunos: e se vocês pudessem ser heróis pela natureza, como foi Ribeiro Telles? A jovem Verónica Gambôa, que participou no projecto, conta que ela e os colegas ficaram surpreendidos: “Há dias de tudo e não há o dia dos jardins?” Puseram mãos à obra e pouco depois partiam para o parque da Piscina Atlântica, no aldeamento da Prainha, obra marcante do célebre arquitecto paisagista, para gravar um vídeo de divulgação do projecto.

O resultado: uma petição que chegou à Assembleia da República e motivou a aprovação, no final do ano passado, do Dia Nacional dos Jardins, que se celebra pela primeira vez neste 25 de Maio, dia do nascimento de Ribeiro Telles. “Olhando para trás, não fizemos nada de especial, mas depois teve um impacto grande”, reconhece a aluna do então 10.º L, hoje prestes a fazer exames do 12.º ano. “Na altura, não pareceu tão importante o que estávamos a fazer como realmente foi...”

Como em tantas outras efemérides, cabe a pergunta: para que serve um Dia Nacional dos Jardins? “Numa situação ideal, talvez não fosse tão necessário, mas infelizmente talvez precisemos de um dia nacional dos jardins”, diz Aurora Carapinha, arquitecta paisagista, docente na Universidade de Évora e uma das discípulas de Ribeiro Telles. Aliás, como acontece com tantas outras causas, “todos os dias têm que ser dias dos jardins”.

Para Aurora Carapinha, é uma efeméride “muito importante pela forma como nasceu”, com o entusiasmo de um grupo de adolescentes, trazendo um “horizonte de esperança”. “Só por isso acho que há que respeitar, a comunidade deve pegar nesta ideia e dar-lhe o caminho certo — e a comunidade somos todos nós, não só os decisores políticos.” “Não é mais um dia para pôr no calendário. É um dia de discussão da importância do jardim enquanto espaço de sociabilidade, de igualdade, de representação da nossa relação com seres vivos”, defende a arquitecta paisagista. “Um jardim é sempre um dispositivo para viver melhor.”

Paulo Farinha Marques, docente na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), reforça também a importância de recordar o trabalho de Gonçalo Ribeiro Telles, o arquitecto paisagista que “corporizou esta ideia do jardim público para todos, que atinge o seu auge no Jardim da Gulbenkian”. Do seu legado fica a defesa de uma “estrutura verde urbana”, baseada numa rede de parques e jardins, que são “as bases para a qualidade de vida e para o sucesso das sociedades”. O jardim pode ser visto, em última análise, como um lugar que “é síntese de todas estas coisas”.

O que é um jardim?

Aurora Carapinha descreve os jardins como pertencendo “ao leque das construções humanas mais inteligente, onde se conseguiu construir um espaço de equilíbrio entre natureza e cultura”. Recorda as palavras de Gonçalo Ribeiro Telles de que “o jardim funciona como um laboratório de criar paisagens de felicidade equilibradas ecológica e socialmente”.

A necessidade de construir jardins nasceu há milénios, quando a humanidade se sedentarizou, mas em particular nas últimas cinco décadas “a urbanização foi tal que nos afastamos do mundo vivo, com a nossa progressiva concentração nas cidades”, descreve Paulo Farinha Marques. “Estamos metidos em gaiolas, em ambientes que construímos, e foi-se perdendo de vista essa “óbvia necessidade”, descreve o arquitecto paisagista, mas ela continua a existir: “Precisamos de ar, de água, de comida, da beleza das coisas.”

Para Paulo Marques, o acesso ao jardim — um espaço verde livre para todos — “é quase um direito da existência humana”. Recorda o período inicial de actividade política de Ribeiro Telles, quando fez parte do que na altura se chamava Ministério da Qualidade de Vida, tutelando áreas equivalentes ao que hoje se poderia chamar “sustentabilidade”. “A qualidade de vida era vista como um direito do ser humano”, explica o investigador da FCUP, “no sentido de ser aquilo que nos mantém dignos enquanto seres”. E vai ainda mais longe: é preciso lutar para que o acesso a espaços verdes “seja para todos”, tal como a saúde, a educação, a segurança social.

Desenhar um jardim, descreve Aurora Carapinha, “é criar, a partir do acto criativo que é próprio da humanidade, um espaço prazeroso”, trabalhando a luz, os sons, os aromas, numa exaltação da natureza com uma forte marca de cada cultura. “Um jardim é uma construção virada para os nossos sentidos — os cinco sentidos — e para uma dimensão emotiva e contemplativa.”

“É talvez o único espaço construído pela humanidade que faz a apologia da inutilidade, do ócio, do que é prazeroso”, descreve Aurora Carapinha. Respondendo a necessidades estéticas e emocionais, é “uma construção humana que nos narra muito e fala muito da relação dos humanos com os outros seres vivos, com os outros elementos naturais”.

No fundo, os jardins são um possível antídoto para algumas ansiedades modernas. “Cada vez estamos mais artificializados, cheios de artifícios e dispositivos digitais, cada vez mais distantes da realidade de onde vimos.” Os jardins fazem florescer a “necessidade de voltar a esse útero”, fundamental para o bem-estar da cidade.

O que não é um jardim

Para Aurora Carapinha, é importante que o poder decisório tenha consciência de que “um jardim não é uma colecção de plantas, não é um canteiro de flores, não é uma placa separadora de trânsito”. É “um vazio cheio de sensações e de emoções” muito importante numa “cidade obesa”.

Hoje, cada vez mais, fala-se dos jardins como solução de adaptação climática das cidades, seja pela sua capacidade de atenuar temperaturas e combater fenómenos como as ilhas de calor, ou como “bacia de retenção” de água, semeando zonas permeáveis que atenuam fenómenos de enchentes como o que ocorreu em Lisboa em Dezembro do ano passado.

De facto, os jardins respondem a muitos problemas para os quais andamos à procura de respostas. Além disso, da mesma forma que “funciona como um oásis para nós, humanos, também pode funcionar como oásis para a fauna e flora, para o solo, terra, ar e água”. “A natureza tem que ter um espaço para respirar, e foi isso que não fizemos.”

“Durante muito tempo, o conceito de jardim abarcava muitas dessas situações”, explica Aurora. Mas, aos poucos, “parámos de desenhar jardins e parques urbanos e começámos a desenhar ‘espaços verdes’ — e isso é mau”. Incomoda-a também a denominação “jardim vertical”, que ignora por completo a questão de sociabilidade que é inalienável ao conceito de jardim. E, já agora, “não lhe chamem esponja”, apela, referindo-se a conceitos como as “cidades-esponjas”.

Para a arquitecta paisagista, “se um jardim não contiver em si os princípios ecológicos, não é um jardim”, mas a ecologia também não resume todas as suas funções. “É muito mais do que uma questão de sustentabilidade e de biodiversidade, tem uma questão antropológica fundamental de sociabilidade. O jardim é um espaço de vida, um espaço de ociosidade, de contacto com os sistemas.”

É preciso olhar para os jardins com mais dignidade, como se fala de uma praça, de uma rua, de uma verdadeira necessidade nas cidades. “Para um político, um jardim possivelmente não tem interesse nenhum”, lamenta Aurora, “mas se lhe dissermos que lhe vai trazer votos porque estamos numa emergência ecológica, se calhar vai a correr plantar um jardim”.

“O problema é que estamos a confundir as funções dos diferentes espaços”, reforça.

Tornar a natureza visível

Falar no ambiente é uma espécie de paradoxo: é de tal forma omnipresente que nem sempre notamos o quanto está à nossa volta. Não damos conta, logo, não cuidamos, muitas vezes nem percebemos que vamos sentir a sua falta. Qual foi o truque do professor Carlos Café, de Portimão, para dar a ver esta riqueza que nos rodeia? “Os professores têm que se saber colocar do ponto de vista dos seus alunos, mas também um pouco acima, no sentido de serem inspiradores. A conjugação destas duas coisas é que esteve na origem”, explica.

Na sua óptica, o mais importante para os jovens foi “a ideia de um herói ter feito uma coisa extraordinária”, convertida então num desafio: fazer chegar uma petição à Assembleia da República. “Esse espírito de desafio e de valorizar os heróis, curiosamente, está muito presente numa coisa que fazem diariamente, que são os jogos”, explica o docente. “Os jogos inspiram-se todos no mesmo paradigma, as tarefas de Hércules, têm muito que ver com esta lógica de superar desafios, passar à fase seguinte.”

Ajudou também explorar as diferentes ferramentas à disposição dos professores — dentro e fora da sala de aula. O texto da petição partiu de um debate de ideias centrado no que os jardins significavam para os alunos. Foram falando da ligação aos animais, dos encontros entre avós e netos, dos encontros de namorados. Com a ajuda da câmara municipal, houve (mesmo em tempos de pandemia) uma visita de estudo de Portimão a Lisboa para visitar os Jardins da Gulbenkian, uma das grandes obras de Ribeiro Telles.

Nota que os jovens que vai encontrando no ensino secundário são particularmente sensíveis aos temas do ambiente. “Há três áreas em que noto que há um cada vez maior envolvimento cívico dos jovens: questões ambientais, a relação com os animais, com cada vez mais jovens vegetarianos ou críticos em relação ao consumo de carne, e os direitos LGBT, uma coisa extraordinariamente mobilizadora para eles.”

Celebrar os jardins

Como celebrar este primeiro Dia Nacional dos Jardins de forma a fazer florescer as ideias de Ribeiro Telles? “Inaugurar um pequeno jardim”, sugere Paulo Farinha Marques, numa sugestão às autarquias. Aliás, a mera divulgação dos espaços verdes — pelos poderes locais, pela comunicação social ou pelas pessoas individualmente — tem um efeito de contágio que pode estimular a atenção.

“Sonhamos que nesse dia as aulas sejam dadas ao ar livre”, escreviam os jovens do 10.º L na petição à AR. “É isso que vai acontecer esta quinta-feira”, conta, entusiasmado, Carlos Café. Na escola Manuel Teixeira Gomes, “a maior parte das aulas da escola serão dadas ao ar livre”, as crianças do jardim-de-infância do agrupamento também se vão juntar, até os idosos foram chamados a participar — dando vida à vocação dos jardins de um lugar de encontro.

Aqui, as celebrações do primeiro Dia Nacional dos Jardins dividem-se entre a escola e o Jardim 1.º de Dezembro, o mais emblemático da cidade, onde os bancos têm azulejos com ilustrações deste momento da História de Portugal. Neste “momento de celebração da natureza e dos animais”, conta o professor Carlos Café, haverá também uma dimensão multicultural, com uma “festa junina” antecipada, com doces típicos, preparada por alunos de nacionalidade brasileira.

Portimão não tem muitos jardins, conta-nos Verónica Gambôa, mas a câmara municipal tem trabalhado com os alunos para mudar um pouco esse panorama. Vai ser criado um jardim ao lado da escola, num lugar escolhido pelos alunos. Ainda não está pronto, mas já tem nome: “Vai chamar-se Jardim Gonçalo Ribeiro Telles.”

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