As metamorfoses do capitalismo, a IA e a grande simulação

No limite, podemos estar em trânsito para fora do nosso habitat biológico, para nos instalarmos em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos.

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Uma entrevista de Noam Chomsky ao PÚBLICO no dia 28 de abril serviu-me de inspiração para estas breves reflexões sobre a importância da inteligência artificial (IA) nas atuais metamorfoses do capitalismo. Começo por abreviar as principais teses de Noam Chomsky.

  1. O cenário atual da IA faz parte da longa luta de classes e das metamorfoses do capitalismo que visam isolar, marginalizar e subordinar os indivíduos,
  2. A IA, atualmente, é essencialmente uma ferramenta corporativa para fazer negócios privados, que utiliza algoritmos para produzir conteúdos à nossa medida e chatbots que simulam a comunicação humana e que nos conduzem à inércia analítica e criativa,
  3. As ferramentas de IA estão a induzir no público uma dessensibilização face aos objetivos do método científico, elas são preditivas e prescritivas e muito pouco explicativas e compreensivas,
  4. As ferramentas de IA proporcionam-nos universos de imaginação e fantasia e, mesmo, mundos paralelos que nos afastam e isolam das duras realidades da vida quotidiana, ou seja, é o sistema ideal para controlar as pessoas,
  5. A única maneira de controlar a evolução tecnológica é educar as pessoas para a autodefesa através da educação, tal como fazemos com qualquer ideologia ou doutrina.

Por estes dias, as guerras da informação e desinformação levam-nos a pensar que a realidade tem várias camadas e que num contexto tão sobrecarregado de informação e hiperligações a IA vem acrescentar mais uma camada a essa realidade. Com efeito, há hoje cada vez menos evidências discursivas, mas duas são especialmente reveladoras nos tempos que correm. A primeira diz-nos que a realidade é cada vez mais paradoxal e em definitivo o que parece não é. A segunda diz-nos que nos abeiramos de um limiar perigoso, de um risco de colisão iminente, de que são exemplo a saúde pública, as alterações climáticas, o crime informático e a segurança coletiva.

Ou seja, constatamos que declinar os paradoxos da realidade hoje, significa alargar o campo de observação da realidade, multiplicar os ângulos e as perspetivas de olhar para o policy-problem. Ora, a nossa maior limitação para abordar o problem-solving neste novo ambiente é, justamente, a descontextualização, nua e crua, que as bolhas de informação e as novas formas de inteligência carregam consigo e que, estou certo, nos farão passar muitas provações.

Na verdade, o nosso mundo encolheu dramaticamente e o drama dos limites é uma tragédia anunciada, tal é o risco de colisão. As sociedades abertas em que vivemos são sociedades de risco iminente que precisam de assegurar um mínimo de proteção, pelo menos a ilusão de uma proteção. Não admira, pois, que, como mecanismo de defesa, elas sejam atravessadas por cortinas sucessivas que as tornam pouco transparentes. Além disso, a velocidade é a nossa imagem de marca e cada velocidade revela e devolve uma grelha de leitura da realidade. Neste contexto, a realidade torna-se ainda mais escorregadia e furtiva e essa é, também, a razão para usarmos muitas máscaras e representarmos outras tantas personagens.

A culminar esta grande evolução em direção aos ambientes simulados, a uma meta realidade, temos, agora, a grande simulação da inteligência artificial, cujos limites ainda não conhecemos em toda a sua extensão. Digamos que estamos a atualizar para o século XXI o princípio cartesiano da dúvida metódica ou sistemática. Entre a descontextualização da evidência estatística e a plurissignificação da realidade, é aqui que nos encontramos. De resto, logo que a rede 5G estiver a operar em pleno e a Internet dos objetos (IOT) começar a ditar, também, a sua realidade, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma verdadeira histeria coletiva de informação e comunicação.

A inteligência artificial, porém, eleva ainda mais a fasquia da nossa dúvida metódica. Como diria o filósofo Yuval Harari, a IA pirateou o sistema operativo da civilização humana (Expresso, 12 maio 2023). O pior, diria eu, é se essa dúvida se transforma em dívida para com as máquinas inteligentes. O campo das ciências sociais e humanas, em especial, os seus conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, precisará de rever o seu código de comunicação para lidar com este novo universo comunicacional.

Ao mesmo tempo, a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico, se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital. Em particular, para enfrentar as consequências das sociedades de risco global estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas e as descobertas acidentais, pois elas dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais habituais.

Finalmente, no limite da nossa saúde mental, experimentamos uma vertigem permanente perante a realidade da adição e alucinação digitais e lutamos quotidianamente com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção.

Notas Finais

A grande simulação da IA e nova dúvida sistemática, esta é a melhor síntese para declinar os paradoxos da realidade do nosso tempo. No limite, podemos, mesmo, estar em trânsito para fora do nosso habitat biológico, para nos instalarmos em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos.

Entretanto, corremos o risco de perder algumas das principais conquistas da civilização humana. Do mais elementar senso comum até ao mais refinado bom senso. Da ética dos valores aos princípios da moral. Dos direitos humanos às regras da democracia política. Da mais requintada ironia até às manifestações artísticas mais genuínas. Da cultura da dúvida metódica à verdade científica. Doravante, tudo se joga no universo comunicacional hipertextual, por isso, como diz Noam Chomsky, a única maneira de controlar a evolução tecnológica é educar as pessoas para a autodefesa através da educação, tal como fazemos com qualquer ideologia ou doutrina.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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