Com o ódio que têm os dedos

A milagrosa capacidade de transformar pequenos contratempos na mais cruel tragédia.

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Com o ódio que têm os dedos das pessoas que não gostam delas mesmas e por isso magoam o mundo à sua volta, a Glória — quando ela e mais duas meninas caíram junto da Sãozinha —, ao levantar-se, prendeu a um prego saliente do muro uma ponta da bata da Sãozinha, que distraída ria com o riso das outras como se também participasse da brincadeira.

Ficou sentada por mais cinco minutos, a contemplar o rodopiar das meninas que, quando apanhavam outra, gritavam «somos mulheres repletas de Deus, somos mulheres repletas de Deus», até que as chamaram para a aula (havia uma senhora, de fora, que as visitava três vezes por semana para as ensinar a ser criadas, como se serve uma pessoa abastada, como se diz «bom dia», como se ajeita um cobertor, como se abre a porta a convidados, como se passa a ferro, como se beberica chá, como se cozinham bolachas inglesas, como se limpam os arraiolos, como se baixa a cabeça até encontrar com os olhos a única humildade possível, o chão, como se deve manter a boca fechada). As meninas correram para a sala onde aprendiam a ser correctamente criadas pelo resto da vida, fazendo-o com a alegria inocente da infância, aquela infância que haveria de acabar com as pontas dos dedos vermelhas da lixívia. A Sãozinha levantou-se para acompanhar as outras meninas para a sala e, quando o fez, ouviu o terrível barulho do tecido que se rasga, e ao olhar para a orla da bata, viu o prenúncio do castigo imputado ao prevaricador e faltou-lhe o ar. Respirou fundo várias vezes, com as mãos nos joelhos, o corpo dobrado para a frente, a tentar não desmaiar. Entrou na sala com a mão direita a tapar o rasgão e não prestou atenção ao que foi ensinado, porque só pensava no inevitável castigo que lhe seria imposto e cujo sofrimento, físico ou moral, seria menor do que o medo de o sofrer, o medo subjectivo, antevisto pela sua imaginação de criança que, da mesma maneira que é capaz de transformar um singelo rebuçado num banquete medieval, tem também a milagrosa capacidade de transformar pequenos contratempos na mais cruel tragédia.

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Fábrica de Criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta-feira. Ao sábado oiça os textos da semana em podcast, lido pelo autor. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts

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