A extracção da infância

“Há um processo social que consiste em extrair a infância de dentro das crianças de modo a que, desprovidas dela, possam portar-se como pequenos adultos, sendo então imbuídas da religião do trabalho.”

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Brincar é uma forma de elevação, de ensaiar a vida e rir das quedas, lição que acabará esquecida para a maior parte dos adultos, que substituirá a possibilidade de rir de alguns dos seus reveses pela tristeza crua ou pela amargura ou pela apressada imposição da idade adulta como uma necessidade. Num livro de Borja, publicado na década de cinquenta, lê-se o seguinte: "Há um processo social que consiste em extrair a infância de dentro das crianças de modo a que, desprovidas dela, possam portar-se como pequenos adultos, sendo então imbuídas da religião do trabalho. A extracção da infância é feita o mais cedo possível, por imposição ou necessidade, por uma educação que se quer austera (…) e as crianças espoliadas da infância, ou, dito de outro modo, adultos num invólucro de criança, passam então a cavar e a apascentar, a cozer e a coser."

O pai sabia o que tinha a fazer, não havia outra hipótese, ou ele assim achava. A escolha inelutável fora relativamente pensada, tão pensada quanto uma decisão destas pode ser, quando se trata de escolher uma filha em detrimento de outra. As crianças mais novas, pensava o pai, dão mais trabalho exigem mais dinheiro, mais atenção, a mais velha, mais ano menos ano, irá trabalhar para a casa de alguém que a sustentará, ficará a dormir num quarto junto à copa, com acesso directo para a rua, tomará conta dos filhos dos donos da casa, talvez a tratem bem e a respeitem até que se case e vá viver com o marido, com quem terá filhas e filhos, e eu netos, mas a outra, a Sãozinha, ainda é muito nova, não posso cuidar dela.

Chamou então a filha, mandou-a vestir-se, disse-lhe vamos passear, e eu, perguntou a mais velha, tu ficas em casa, há louça para lavar.

– Vamos passear? – perguntou a Sãozinha.

– Vamos.

– Onde?

– Pelo campo, por aí.

A Maria da Conceição, São, Sãozinha, estava radiante: passear com o pai, só ela e o pai. Ter a sua atenção era tão raro que repetia incessantemente "vamos passear vamos passear".

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Fábrica de criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta. Pode lê-los aqui. Ao sábado há um episódio em podcast, lido pelo autor, com os textos da semana. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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