Carta Aberta a António Guterres sobre o Tratado da Carta da Energia

Pedimos-lhe que nos ajude a dar o impulso que falta a Portugal (e a outros Estados-membros em situação semelhante) para fazerem a escolha responsável face às gerações seguintes.

Prezado secretário-geral engenheiro António Guterres,

Antes de mais, um bem-haja à sua dedicação e luta contra as alterações climáticas, que lucidamente reconhece como um dos maiores perigos que a humanidade enfrenta, capaz de causar no futuro próximo danos humanos e materiais semelhantes ou superiores aos causados pela Segunda Guerra Mundial. O engenheiro António Guterres, que representa a organização que arduamente redigiu seis exaustivos relatórios de análise sobre as mudanças climáticas, certamente já reparou que não falta quem escolha ignorar obviedades sem pudor das incongruências que isso representa ou das consequências que acarreta. E é precisamente sobre isso que lhe queremos falar.

Escrevemos-lhe esta carta no momento em que Portugal pode ter uma importância desproporcionada face à sua dimensão no combate a esta crise climática. Como saberá, debate-se neste momento na União Europeia a (des)continuidade do Tratado da Carta da Energia (TCE), um tratado que estabelece um sistema de justiça privada que se coloca acima dos estados com o propósito de proteger grandes empresas multinacionais no sector da energia, em particular as grandes empresas petrolíferas e outras associadas à exploração de combustíveis fósseis.

Terá especialmente conhecimento disto porque, no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), há várias referências específicas a este tratado, reconhecendo-o como um sério obstáculo à mitigação das alterações climáticas e uma ferramenta que pode ser utilizada para bloquear legislação nacional com esse fim. Uma das autoras principais desse mesmo relatório, a Dra. Yamina Saheb, estimou inclusivamente que o volume de emissões protegido pelo TCE, entre 2018 e 2050, corresponderá a cerca de cinco vezes aquilo que a União Europeia pode emitir no mesmo período se quiser cumprir o objectivo de 1,5º graus mencionado no Acordo de Paris. É portanto impossível cumprir o Acordo de Paris, o mais abrangente acordo mundial de combate às alterações climáticas, e o TCE: ou se cumpre um, ou outro.

As consequências do TCE são bem reais e palpáveis, especialmente para os bolsos de quem paga a conta. Em Itália, um investimento de 40 milhões de euros na extracção de petróleo a que o Governo quis pôr fim para proteger a biodiversidade de ecossistemas únicos e insubstituíveis deu origem a um pedido de indemnização mais de seis vezes superior ao valor do investimento mencionado. Nos Países Baixos, legislação para impedir a produção de electricidade a partir do carvão, a ter início em 2030, originou duas queixas diferentes ao abrigo do TCE, exigindo ao governo holandês cerca de mil milhões de euros cada uma. Em França, o ministro do Ambiente Nicolas Hulot demitiu-se depois de ver legislação forte e consequente sobre a extracção de combustíveis fósseis diluída ao ponto da inconsequência devido à ameaça de recurso a estes “tribunais VIP” que o TCE estabelece. O próprio ministro afirmou que os lobbies das multinacionais têm demasiada influência na definição de políticas ambientais.

É por isto que o TCE é um tratado que seria cómico se não fosse trágico. O prevaricador — as empresas que ameaçam o clima e contribuem directamente para as alterações climáticas — não tem de indemnizar o prevaricado — a sociedade e todos nós que dela fazemos parte — mas o contrário é verdade: os cidadãos têm de pagar as indemnizações milionárias exigidas pelas empresas por ousarem lutar contra as alterações climáticas. Parece certamente algo tirado de uma comédia negra distópica com largas doses de surrealismo.

Felizmente, na sequência das denúncias por parte de associações ambientalistas e organizações da sociedade civil, vários países da UE já abandonaram este acordo ou anunciaram a sua intenção de o fazer. Além da Itália, que já saiu do tratado em 2016, deram também este passo mais recentemente a Alemanha, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, França, Luxemburgo, Países Baixos e Polónia. No Parlamento Europeu, todos os grupos políticos com excepção da extrema-direita votaram maioritariamente a favor do abandono deste tratado. No entanto, isto não acontece sem que haja também fortes resistências. Alguns Estados-membros da UE continuam a recusar a possibilidade de uma saída coordenada, favorecendo o statu quo, o lugar confortável e quase soberano das empresas multinacionais, e ameaçando o clima e as finanças públicas. E é aqui que o nosso país pode fazer toda a diferença.

Portugal pode desempatar este impasse, declarando-se publicamente a favor de uma saída coordenada e fazendo o equilíbrio de forças pender para o lado necessário. O impacto deste posicionamento seria tanto simbólico quanto material. Simbólico porque a saída do próprio país depositário da Carta não seria facilmente ignorada ou minimizada. Material porque a saída do tratado teria um efeito na redução das emissões globais de gases com efeito de estufa maior do que qualquer outra medida em prol da transição energética tomada ao longo desta legislatura. O posicionamento inequívoco de Portugal pela saída do TCE pode ser o “empurrão” que falta para nos libertarmos deste acordo que há décadas fica a dever ao planeta e à democracia. Será também por isso uma escolha histórica, que transformará o mundo para nós e para as gerações futuras.

Pedimos-lhe por isso, prezado engenheiro António Guterres, que nos ajude a dar o impulso que falta a Portugal (e a outros Estados-membros em situação semelhante) para fazerem a escolha responsável face às gerações seguintes. Pedimos-lhe que apele aos governantes (incluindo o primeiro-ministro, António Costa) para que anunciem a retirada do TCE e declarem publicamente o seu apoio a uma saída coordenada da UE do Tratado da Carta da Energia. Seria um grande favor que nos faria já que, como cidadãos comuns, pouco temos sido ouvidos. É que prestar contas às grandes empresas é sagrado, mas aos cidadãos é sacrilégio, como fica explícito neste tipo de tratados.

Agradecemos desde já a atenção disponibilizada e, mais uma vez, o trabalho desenvolvido enquanto secretário-geral das Nações Unidas. Qualquer coisa, não hesite em contactar-nos. O mote principal mantém-se: SAIR DO TCE JÁ!

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