A arbitragem do nosso descontentamento

O aperfeiçoamento obtido pelos denominados “salários de eficiência” tende a ser não linear. Ficamos mais motivados a trabalhar mais e melhor com mais salário, mas só até certo nível.

Recentemente, vieram a público, um pouco por toda a Europa e em vários canais digitais, artigos comparativos dos salários e de outros rendimentos atribuídos aos árbitros que apitam as principais ligas profissionais de futebol de 11. Lendo os comentários que, também um pouco por todo o lado, foram deixados por leitores mais ou menos anónimos, ia perpassando a ideia, mais mítica do que substantiva, de que i) melhores pagamentos aperfeiçoam o desempenho dos árbitros por jogo e ii) melhores pagamentos diminuem o risco de corrupção na arbitragem.

Ainda que a diferença evidenciada no pagamento da arbitragem europeia seja significativa e, idealmente, deva ser diminuída, gostaria de nestas poucas linhas chamar a atenção para o enviesamento das duas tendências sugeridas nos comentários e após mostrar como a discussão, inclusive nos espaços institucionais, deva ser dirigida para outras dimensões.

Em primeiro lugar, o aperfeiçoamento obtido pelos denominados “salários de eficiência” tende a ser não linear. Quer isto dizer que cada um de nós fica mais motivado a trabalhar mais e melhor com mais salário, mas — e aqui a parte não linear — até um certo nível, quer de salário quer de restrições individuais.

Um halterofilista consegue levantar três vezes o seu peso, no máximo e considerando uma reunião extensiva de condições próprias e ambientais. Podemos decuplicar o prémio por recorde que, a menos que entrem recursos pouco éticos, o melhor organismo humano dificilmente ultrapassará o tal limite do triplo do peso do atleta. Portanto, além do estímulo motivacional que vem de um reconhecimento maior, temos de pedir um aperfeiçoamento das condições físicas, mentais, éticas, técnicas e intelectuais de todos aqueles cujo trabalho passa por avaliar o desempenho alheio, sejam juízes desportivos, sejam juízes dos tribunais civis e criminais, sejam professores ou outros avaliadores.

Em segundo lugar, uma extensa lista de trabalhos assinados por economistas focando a criminalidade em redor do globo vem desmistificar a ideia de que i) crime é próprio dos mais pobres, ii) crime diminui com mais rendimento médio e iii) crime resolve-se (só) com dinheiro. Em concreto, numa frase que ficou famosa, um detido numa penitenciária brasileira, perguntava a um dos investigadores: “Se o meu pai e o meu avô sempre foram pobres, porque só eu virei delinquente?” Na leitura combinada dessa linha de investigação, tem-se provado que influencia mais a propensão para o delito o grupo primário que nos envolve. Nomeadamente amigos, colegas, vizinhos e familiares que, se relativizarem as consequências da corrupção, do roubo, ou do crime no geral, facilitam a nossa própria propensão.

Assim, um árbitro pode ser corrompido porque os seus valores toleram mais a corrupção do que deveriam tolerar, nada (ou muito pouco) tendo que ver com os salários que aufere. Portanto, se o árbitro vê outros a serem corrompidos e a ganharem liquidamente, se o árbitro vê que fica a perder por não se deixar corromper, ou se o árbitro tem toda a gente amiga e familiares a diminuírem o peso pelo ilícito da corrupção, ele está mais propenso a ser corrompido. Logo, para mudar a propensão de um árbitro a ser corrompido, devemos começar por mudar a propensão de todos os árbitros a serem corrompidos.

Terminando e partindo do princípio da qualidade da informação referida, seria mais interessante uma análise sobre vários focos: 1) a relação entre o valor pago e a qualidade do desempenho da equipa de arbitragem (aferida por vários indicadores, desde a pontuação média dos principais jornais desportivos até à avaliação dos observadores, passando pela exibição de amarelos e vermelhos); 2) a relação entre o valor pago e o PIB per capita, o valor do salário médio dos jogadores profissionais e o custo médio do bilhete de jogo entre profissionais; e 3) a relação entre o valor pago aos árbitros, a respetiva evolução em termos reais (descontando a inflação) e a evolução do número de amarelos, vermelhos, faltas e tempo útil de jogo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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