Hoje é sábado, amanhã é domingo. É uma letra de uma bonita canção com sotaque brasileiro, o Dia da Criação pela voz do grande Vinicius de Moraes. Parece um início de conversa que nos diz o óbvio. Pode ser. E o óbvio não se escreve? Porque não? 

Acho que muitas vezes se ignora o óbvio, ano após ano, Inverno após Inverno, Verão após Verão. Serve isto para vos dizer o óbvio: a seguir à Primavera é o Verão. Mesmo quando temos à volta um Verão em Abril (e que, por ser extemporâneo, é notícia), não deixa de ser Primavera. Assim, por favor, não me venham dizer - quando os solos secarem, a água faltar e os incêndios nos queimarem no pico do verdadeiro Verão - que não vos avisei, não digam que não sabiam que este ano era assim e que foram apanhados de surpresa.

Há pouco tempo discutíamos por aqui (a propósito do que escreveu António Guerreiro no livro de recitações) que, às vezes, as notícias do clima são um pouco ridículas. Porquê fazer uma notícia que diz que está a fazer frio no Inverno ou que está calor no Verão? Não é suposto que assim seja? Sim, é verdade. Também é verdade que, às vezes, exageramos nesse boletim sobre o tempo que anda por cima das nossas cabeças.

Mas esta atenção existe porque sabemos que isso importa. A nós e aos nossos leitores. Explicar que o calor que estamos a sentir é normal (ou não é normal) para a época pode ser uma informação importante, ainda que não seja revolucionária. Explicar porquê também.

Por outro lado, quando essas temperaturas ultrapassam as médias, ou as chuvas e o frio passam dos limites, é também um sinal que não devemos ignorar. Lembro-me que quando a chuva afogou Lisboa no final do ano passado, uma das várias pessoas que o Azul ouviu sobre a cidade alagada insistiu numa frase batida. O aviso não era novo mas era oportuno. Maria José Roxo lembrava-nos no Inverno que a seguir teríamos o Verão. Lembrava-nos que a água a mais que caiu do céu e feriu a capital devia estar a ser guardada para quando fosse Verão e nos faltasse. E vai faltar, não haja qualquer dúvida sobre isso. 

Sabemos a ordem das estações do ano e o tempo que tipicamente trazem. Agora falta fazer alguma coisa com o óbvio. Criar bacias de retenção, armazenar água, guardar para ter mais tarde. Ouvir especialistas, ouvir quem vive perto da água, quem depende dela ou quem mais sofre com a sua falta, preparar as cidades, preparar a agricultura, preparar o país. Porque é certo que o Verão há-de vir sempre a seguir ao Inverno, com a Primavera pelo meio, talvez para nos distrair. 

O passar dos limites do típico calor e do esperado frio é um alerta. O clima alterado fora do tempo que nos traz um Verão em Abril também é um aviso. Há uma crise climática que vai ganhando um ritmo assustador. O passo da mudança já não é lento, acelerou e já a sentimos na pele, na rua, em casa. 

O relatório anual O estado do clima na Europa foi divulgado esta quinta-feira pelo serviço do programa europeu Copérnico para as alterações climáticas. O relatório apresenta dados que são, "de alguma forma, assustadores", mas "é importante saber a verdade" para que se possa "agir e tomar as medidas adequadas", afirmou Mauro Facchini, chefe da Observação da Terra na Direcção-Geral da Indústria e Espaço de Defesa da Comissão Europeia, durante a conferência de imprensa virtual para apresentar o relatório.

O documento inclui uma generosa lista de infelizes recordes a reportar. Temperaturas? A Europa viveu o Verão mais quente de que há notícia, com 1,4 graus Celsius acima da média, e 0,3-0,4 graus Celsius acima do anterior Verão. Confirma-se também que a Europa é o continente onde o termómetro está a subir mais rapidamente ao longo das últimas décadas.

Mais: Ondas de calor? O Sul da Europa testemunhou um número recorde de dias com "stress térmico muito forte", diz o relatório. Incêndios? "2022 foi o ano em que os países europeus registaram a segunda maior área ardida desde que há registos." Emissões de carbono resultantes desses fogos no Verão? "Foram as mais altas em 15 anos, com alguns países chegando mesmo a registar as maiores emissões em 20 anos." Seca? "A anomalia anual da humidade do solo foi a segunda mais baixa no último meio século." Degelo? A combinação perigosa de pouca neve no Inverno e muito calor no Verão favoreceu uma perda recorde de gelo dos glaciares nos Alpes. (Para termos uma ideia do bloco de gelo perdido apelamos à sua imaginação: estamos a falar de um volume de gelo que transformado num cubo e colocado junto à Torre Eiffel teria 5,4 vezes a altura do monumento francês). Aumento do nível médio do mar? Novo recorde no ano passado. Emissões de gases com efeito de estufa? "As concentrações médias anuais globais de dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) atingiram os níveis mais altos alguma vez medidos por satélite."

Hoje é quinta-feira, amanhã é sexta. Hoje é Primavera, "amanhã" é Verão. As canções podem levar-nos a cantar ou dançar. Mas o que nos fará agir?

(P.S. – O Azul faz um ano a 22 de Abril, Dia da Terra. Para celebrar, preparámos uma série de trabalhos dedicada às zonas costeiras e aos desafios que enfrentam em plena crise climática. Temos já uma infografia publicada e mais trabalhos serão publicados até ao dia 12 de Maio, dia da conferência internacional do Azul, que acontecerá no Porto. Dizem que dá azar celebrar antes do tempo, por isso sou capaz de apostar que a próxima newsletter será sobre o nosso primeiro ano Azul)