Woke ou, como dizer, o troll da esquerda

Encontraram uma nova forma de nos “cancelar” (termo maravilhoso): sempre que nos atrevemos no uso da palavra somos wokes.

Quando o filósofo português Leonardo Coimbra se lançou na escrita de A Alegria, a Dor e a Graça, obra-prima do criacionismo em Portugal, longe estaria de saber que aos olhos de hoje reuniria todos os elementos para ser apontado como um woke, pois que um homem que se dedica a escrever sobre a dor da perda nada mais é do que um patológico traumatizado, levado pela emoção histriónica de que tanto são acusados os que se dispõem a ocupar lugares de dor, eivados por isso de qualquer atributo racional ou legitimidade intelectual.

Leonard Coimbra foi um pedagogo, um académico e um intelectual que não se refugiou nos lugares de privilégio e deixou-se tocar por uma visão mais humanista da vida, compreendendo que para a riqueza existe a pobreza, para a saúde existe a doença, para a alegria existe a tristeza. E é esta perceção da realidade que os lugares de privilégio temem: afinal, se for dada voz aos pobres, não se diminuirá o espaço de oratória dos ricos? E se for dada palavra às minorias sociais, não se retirará uma parte apetecível do bolo à maioria de poder? Como anuir numa oratória exibicionista à volta dos problemas dos negros, dos africanos, dos não-europeus e não-brancos, correndo o risco de, com isso, retirar centralidade às questões do Ocidente?

As doenças apanham-se em África, no mundo civilizado as pessoas são todas saudáveis.

Quem quer correr o risco de criar lugares de fala à histeria feminista do #Me Too, abrindo a porta para que sejam revelados segredos do poder patriarcal por um grupo de “mulheres” ardilosas a fazer-se passar por vítimas para ocuparem os lugares da hegemonia falocêntrica?

Já “quase ninguém” confessa abertamente que odeia os negros – repentinamente veio-me à memória a imagem daquele dia em que recebi em minha casa alguém que, num impulso, gritou da minha janela “aqui é que mora a preta”, desculpem-me a vitimização – e até convém cultivar uma relativa amizade com “alguém mais escuro” que certifica a bondade dos privilegiados que tão bem acolhem. Da mesma forma, reserva-se um sorriso cínico àquele que tem “uns trejeitos”, para manter o estatuto de que os privilegiados são “pessoas de bem”.

E aos pobres, aqueles a quem já ninguém dá uma esmola porque já se sabe ser para a droga, o melhor é que o Estado distribua a sopa na periferia, longe das avenidas largas, para manter a imagem de uma Europa onde não se morre de fome. Coisa das Áfricas, dos meninos de pés descalços a quem se ajuda com o cartão da UNICEF em época de boas festas.

E assim, não podendo os privilegiados enunciar as palavras que as suas almas gritam sempre que leem as pretas que têm a mania que são espertas, as bichas que até já se casam umas com as outras, os ciganos que agora julgam que podem ser doutores, as feministas que fumam nos cafés ou os imigrantes que querem viver no centro da cidade, encontraram uma nova forma de nos “cancelar” (termo maravilhoso): sempre que nos atrevemos no uso da palavra somos wokes.

Ser-se proscrito era nos tempos da ditadura e ditaduras só na Ásia; que não lhes caiam os parentes na lama, os privilegiados não se confundem com os donos de restaurantes chineses.

Incomodados por não nos poderem chamar todos os nomes (e porque já ninguém convence as crianças que vem aí esquerda comê-las ao pequeno-almoço), os privilegiados retiraram-nos das casas de palha e enfiaram-nos em quadrados de chapa. Agora chamam-nos wokes!

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