Boaventura

Como conciliar estas realidades? Por um lado, um pensamento consistente que fez escola. Por outro, práticas abusivas que são indissociáveis da história dessa escola e da sua principal figura.

Como ler um autor maldito?

Esta é uma pergunta tanto mais difícil de responder quanto mais pensarmos no que queremos dizer por “um autor maldito”. Um “autor” é alguém que produziu uma obra, mais ou menos relevante. A adição do qualificativo inscreve o dito autor num círculo muito mais restrito de autores cujas decisões, ações e posições o tornam “maldito”. Este comportamento pode ser político-ideológico, como no caso de um Heidegger ou de um Schmitt. O caso que me aqui traz é bem diferente, mas nem por isso menos relevante, sobretudo para a universidade portuguesa.

O interesse e relevância pública do caso Boaventura tem que ver com dois factos que vale a pena discutir. Isto se se pretender, efetivamente, fazer justiça às vítimas, passadas e futuras.

O primeiro facto prende-se com a circunstância de que Boaventura de Sousa Santos (B.S.S.) fundou e dirigiu um centro de investigação em Ciências Sociais desde os anos 70, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Quer por ter lá trabalhado (2004-2006), quer por ter escrito sobre o papel do CES na institucionalização da sociologia em Portugal, não tenho dúvidas de que o CES é um projeto e um reflexo de B.S.S.. Sem B.S.S., nunca teria havido CES. Pelo menos duas gerações de investigadores do CES foram seus alunos de doutoramento.

Desde os anos 80, e certamente nas últimas duas décadas, o CES afirmou-se como um dos principais polos de produção científica nas ciências sociais no nosso país. E fê-lo de uma forma única em Portugal – em torno da figura tutelar de B.S.S.. É, com efeito, o único centro cuja produção científica se refere ao pensamento do seu fundador. Se existe uma identidade CES, essa identidade decorre, em boa medida, desta referência continuada à obra e ensino de B.S.S.. Graficamente, a melhor maneira de representar o que tenho em mente é uma pirâmide, com B.S.S. no vértice superior. Uma estrutura piramidal, assim mantida pelo próprio e os seus associados ao longo de décadas. É à luz desta estrutura que as acusações de extrativismo académico e sexual que vieram a público esta semana devem ser entendidas.

O segundo facto é que esta pirâmide assenta sobre o pensamento de B.S.S.. Infelizmente, na universidade portuguesa, pirâmides há muitas. Mas poucas assentam numa obra tão consistente e original quanto a de B.S.S.. É aqui que reside o paradoxo. A razão pela qual B.S.S. é, porventura, o cientista social português com mais impacto no estrangeiro, quer no Sul Global, quer no mundo anglo-americano, é só uma: B.S.S. é o autor de um corpus de livros e artigos sem paralelo no nosso país. Uma obra que rivaliza com as principais figuras do campo: Mignolo, Grosfoguel, Quijano, Lugones, etc.

E a razão pela qual o seu pensamento tem feito escola é que é consistente. Podemos não concordar com as suas premissas axiológicas e epistemológicas (sou um deles), mas a realidade é que delas decorrem teorias que procuram explicar a realidade, frequentemente conducentes a hipóteses que permitem guiar a análise das observações, e, por vezes, a intervenção política. Esta consistência que vai da epistemologia, passa pela teoria e envolve explicações, hipóteses, observações e desagua na intervenção é a razão pela qual os seus escritos são recomendados a alunos, continuam a ser alvo de debate entre os seus colegas de profissão, e inspiram ativistas um pouco por todo o mundo.

O paradoxo é, portanto, como conciliar estas duas realidades. Por um lado, um pensamento consistente que fez escola. Por outro, práticas abusivas que são indissociáveis da história institucional dessa escola e de B.S.S. como a sua principal figura intelectual. Mais especificamente, como ler B.S.S. como um autor maldito?

Richard Wolin acaba de publicar um livro imprescindível para nos ajudar a perceber os dilemas de se ler um autor maldito – no caso, Martin Heidegger, o filósofo alemão cuja associação ao nazismo o fez cair em desgraça. Em Heidegger in Ruins: Between Philosophy and Ideology, Wolin, um dos mais renomados historiadores intelectuais do nosso tempo, passa em revista todos os aspetos da vida e obra de Heidegger para concluir duas coisas: 1) sim, que Heidegger se mantém, até ao final da vida, um anti-semita que nunca se afastou do nacional-socialismo, e que estas são marcas indeléveis da sua personalidade e pensamento; e 2) sim, que as obra que este Heidegger (anti-semita, autoritário) produziu são, ainda assim (ou por isso mesmo), um dos marcos do pensamento filosófico e político do século XX.

O que fazer? Há quem pense ser mais seguro não ler Heidegger, ou qualquer autor maldito. Afinal, não faltam livros para ler de autores igualmente brilhantes, mas sem semelhantes pechas éticas ou morais.

Há também aqueles que, pelo contrário, leem Heidegger precisamente pelas suas convicções políticas. Este grupo é o alvo preferencial da análise tão forense quanto didática de Wolin.

Existe igualmente um outro conjunto de pessoas que tentam ler o autor, apesar das suas ações. Aqui estou a pensar designadamente na forma como um autor conotado com a esquerda radical como Ernesto Laclau encontrou em Carl Schmitt, outro autor maldito associado ao nacional-socialismo, fonte de inspiração para criticar a democracia representativa e o liberalismo.

Finalmente, há a tarefa árdua, e porventura inglória, de se tentar ler um autor maldito enquanto tal. Em toda a sua complexidade, ambivalência e contradição.

No caso do CES e de B.S.S., estas opções vão pautar os próximos (se não muitos) anos. O desafio que o CES enfrenta é semelhante a um banco com ativos tóxicos. Será possível separar o “CES bom” do “CES mau”, de modo a preservar o modo de subsistência de centenas de pessoas que lá estudam e trabalham, num ambiente de trabalho livre de abusos?

Para quem lê B.S.S., e o recomenda aos seus alunos, o dilema é o seguinte: manterá a mensagem de B.S.S., fundamentalmente ancorada numa ideia de emancipação face à opressão, a sua validade, quando lida à luz das acusações vindas a lume esta semana?

Perguntas difíceis, cuja resposta irá ajudar a definir o futuro das nossas ciências sociais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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