Em Portugal só há pessoas saudáveis…

O Governo é tudo menos inclusivo e deixa de fora aqueles que, por doença, não se conseguem alimentar com o cabaz de produtos saudáveis a IVA zero (e esta medida é apenas temporária).

Depois de uma pandemia, de uma guerra, chegou agora a vez de a inflação tirar o sono a qualquer cidadão. Os governos europeus desdobram-se em medidas para ajudar os seus cidadãos e empresas, na esperança de que o barco se aguente até que melhores dias cheguem.

Contudo, naquilo que vem sendo comum em Portugal, as medidas propostas e/ou postas em prática parecem esquecer-se de uma parte da população portuguesa que, por motivos de saúde, já se encontrava mais vulnerável, antes mesmo da chegada da temida inflação. Agora que a inflação elevada se instalou, estas pessoas continuam mais expostas ao custo acrescido da concretização de direitos tão básicos e elementares como o direito à alimentação, a alimentarem-se correctamente, de acordo com o que a sua saúde lhes permite.

Veja-se o famoso cabaz de bens essenciais com IVA zero que o Governo propôs e que tem estado nas bocas do mundo. Pessoas que, por razões de saúde, não têm opção a não ser alimentar-se com determinados produtos ou complementos nutricionais clínicos, mais uma vez, ficaram de fora. Exemplos concretos? Pessoas com doença celíaca, pessoa com alergias e/ou intolerâncias alimentares e pessoas que fazem complementos de nutrição clínica.

É caso para dizer que em Portugal só há pessoas saudáveis!

Pegando no exemplo da nutrição entérica e parentérica (vulgo, nutrição clínica): falamos de pessoas com malnutrição e/ou desnutrição resultante de ausência de ingestão, digestão e/ou absorção de nutrientes, que leva à alteração da composição corporal (nomeadamente na depleção muscular e desenvolvimento de carências nutricionais), diminuindo as capacidades motora e cognitiva e comprometendo a evolução da condição clínica.

A malnutrição associada à doença compromete a eficácia de muitas terapêuticas farmacológicas e cirúrgicas, estando directamente associada ao aumento dos reinternamentos e às elevadas taxas de morbilidade e mortalidade.

Quando, num quadro de doença, a normal alimentação oral deixa de ser possível ou é insuficiente, há necessidade de recorrer a outras vias de nutrição clínica (nomeadamente por via entérica ou via parentérica), que passa a ser a única solução possível para nutrir o doente. A falta de acessibilidade, devido ao elevado custo dos produtos de nutrição clínica, com zero comparticipação por parte do SNS, faz com que estas terapêuticas tenham custos socioeconómicos elevados, tanto para os doentes como para o próprio Serviço Nacional de Saúde.

Estima-se que 1% da população portuguesa, ou seja, cerca de 115 mil doentes, necessite de suporte nutricional, com recurso a nutrição clínica. Os encargos anuais do SNS com o tratamento das consequências clínicas da malnutrição desses doentes por carência são estimados em cerca de 255 milhões de euros, por extrapolação dos dados económicos publicados em Espanha, para a população portuguesa. Valores bem acima do que seria necessário para garantir numa solução sustentável através da comparticipação dos produtos de nutrição clínica.

Ora, temos visto que Portugal continua na liderança dos países europeus com maior excedente orçamental, conforme atestam as notícias sobre as contas públicas nos últimos meses. Contudo, há sete anos que se luta pela comparticipação dos produtos de nutrição clínica no domicílio, e há sete anos que os governos liderados por António Costa continuam a deixar à margem estas 115 mil pessoas que poucas ou nenhumas escolhas alimentares têm.

O auge surgiu na discussão do Orçamento de Estado para 2023, quando três partidos com assento parlamentar apresentaram propostas para esta comparticipação se concretizar. Duas foram chumbadas pela bancada socialista e outra, apresentada pelo Livre, acabou com a montanha a parir um rato: um grupo para estudar a implementação da comparticipação. Era isto ou nada. E na verdade a Direcção-Geral da Saúde já emitiu há anos a norma 17/2020, que estabelece os critérios, os tipos de produtos e as doenças abrangidos pela necessidade de nutrição clínica. Não é por isso necessário reinventar a roda para que a comparticipação se efective. Basta o Ministério das Finanças dar luz verde para que se avance!

Continuamos, contudo, a ver sucessivos anúncios sobre ajuda às famílias, aos mais vulneráveis, mas, claramente, o Governo é tudo menos inclusivo e deixa de fora aqueles que, por doença, não se conseguem alimentar com o cabaz de produtos saudáveis a IVA zero (e esta medida é apenas temporária). Mesmo com as medidas aprovadas no âmbito da discussão na especialidade desta medida, uma coisa é certa: em Portugal só há pessoas saudáveis, que bebem leite, comem ovos e pão... E tapa-se o sol com uma peneira no que diz respeito a garantir propostas sustentáveis a longo prazo para as pessoas que não conseguem alimentar-se normalmente.

Enquanto se finge que todos os portugueses são saudáveis, há pessoas a gastar milhares de euros para conseguirem manter-se nutridas e, em última análise, vivas. O custo da nutrição clínica pode chegar a centenas de euros por dia, milhares de euros por mês. Simplesmente, não têm outra opção para se manterem nutridas. A maioria, como é óbvio, não o consegue fazer. Outras procuram soluções alternativas na Internet ou caseiras, que em nada são alternativas seguras ou uma solução.

Importa por isso que as diferentes propostas que aguardam discussão no Parlamento avancem, que o Governo entenda de uma vez por todas que produtos de nutrição clínica não são um luxo, mas uma questão de sobrevivência para muitos portugueses!

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