Mudar de vida: porque é que há quem deixe a carreira para trás para ser artesão?

Pode parecer estranho que gestores de topo se queiram tornar padeiros, mas há cada vez mais pessoas com cargos altamente qualificados que se sentem atraídas pelo mundo dos trabalhos manuais.

Foto
Porque é que há quem deixe a carreira para trás para ser artesão? Pexels

Subir na carreira faz cada vez menos sentido para uma parte da população a cada dia que passa. Em França, como noutros países ocidentais, é cada vez mais comum ver designers de interiores a mudar de vida e tornarem-se padeiros, ex-banqueiros a abrir queijarias e técnicos de marketing a apostarem na vida de electricista.

Em Janeiro de 2022, 21% dos trabalhadores franceses estavam no processo de mudança de carreira e 26% estavam a considerá-la a longo prazo. Como parte desta tendência, quem ocupa cargos executivos e altamente qualificados sente-se cada vez mais atraído pelo mundo dos trabalhos manuais. A prática é por vezes referida como downshifting em inglês, o que, segundo o Dicionário de Cambridge, é "a prática de deixar um emprego bem pago e difícil para fazer algo que lhe dê mais tempo e satisfação, mas menos dinheiro". Já o dicionário da Porto Editora traduz para “abrandamento; mudança de estilo de vida”.

Estas mudanças são um quebra-cabeças para os sociólogos, que tradicionalmente têm procurado compreender os factores que impulsionam a mobilidade ascendente, a reprodução de classes ou a despromoção social. Actualmente, o último movimento é observado a uma escala intergeracional, com as crianças a ocuparem posições inferiores às dos seus pais na hierarquia social, mas também numa escala intrageracional, no caso das pessoas que desempenham funções para as quais estão sobrequalificadas.

Em ambos os casos, o fenómeno é pensado como algo a que as pessoas estão sujeitas, e não como o resultado de uma decisão. Como podemos, então, olhar para os gestores que querem ser artesãos?

Para quem subiu na carreira ou pôde estudar, a mudança para uma profissão artesanal (ou "manual") poderia ser entendida como uma "desqualificação voluntária" paradoxal. Como parte do meu doutoramento, embarquei numa missão para compreender as motivações dos "downshifters", entrevistando 55 pessoas.

Uma relação específica com o trabalho

A primeira conclusão a retirar destas entrevistas é que a maioria das pessoas que trocaram de carreira tinha uma relação com o trabalho que podemos descrever como “empírica”. Isto quer dizer que, mais do que recursos materiais ou prestígio obtido pelo estatuto, estes trabalhadores dão prioridade a uma vida profissional satisfatória e gratificante.

A dimensão económica, embora não seja totalmente omitida, era mais facilmente ignorada porque era comum que os nossos entrevistados tivessem redes de segurança. Para alguns, eram subsídios de desemprego durante o tempo necessário para mudarem de emprego ou os rendimentos de um cônjuge; para outros, a assistência financeira de familiares, poupanças ou mesmo bens imobiliários.

A este respeito, Tom (nome fictício), doutorado em Física que trabalha como carpinteiro, confirmou-me que ter "o capital cultural e económico" e a segurança de saber que "os seus pais [que estão os dois na academia] estão lá" para o que for preciso são as condições que lhe permitem "vaguear entre um emprego e outro".

Graças aos seus diplomas ou à experiência profissional passada, estes profissionais sabem que podem regressar a um emprego mais qualificado se as coisas não correrem como gostariam. Com estas condições, os profissionais que procuram um emprego mais de acordo com os seus valores podem permitir-se transgredir as fronteiras socioprofissionais.

É certo que o comércio artesanal corresponde a um sector mais associado à classe trabalhadora do que o que as suas origens os tinham habituado. Requer um nível de educação inferior ao que têm e geralmente confere rendimentos mais baixos ou mais irregulares. Mas a relação empírica com o trabalho leva a que os trabalhadores se concentrem menos nestes critérios do que na satisfação que o seu novo emprego pode intrinsecamente proporcionar. Por conseguinte, só raramente me disseram que se sentiam desvalorizados, avaliando a sua situação mais a nível individual e em termos de realização pessoal do que em termos do estatuto socioprofissional associado.

Dar significado ao trabalho de cada um

Esta relação empírica com o trabalho leva frequentemente os profissionais de carreira a indicar que o trabalho artesanal teria mais "significado" do que a sua antiga profissão. Gabriel, antigo gestor de contas que agora trabalha como comerciante de queijo, resume o que o levou a considerar que o seu trabalho "não tinha significado": “Todos os dias são a mesma coisa […] e dizes a ti próprio ‘Bem, vou mesmo passar 40 anos à frente de uma secretária, com o rabo numa cadeira a olhar para um computador? É mesmo isto que quero fazer?’”

Nem todas as pessoas que quiseram mudar de vida tinham necessariamente um trabalho de "escritório" em frente a um computador. Mas este tipo de actividade é, no entanto, repulsivo, o que estrutura a sua relação com o trabalho "intelectual". São-lhe atribuídos vários pontos negativos: primeiro, a natureza sedentária do trabalho, tanto por acontecer dentro de um edifício quanto devido ao tempo que se passa sentado. Segundo, o sentimento de improdutividade que o trabalho "intelectual" por vezes traz, algo muito mencionado. Finalmente, os tais "trabalhos de escritório" envolvem frequentemente uma forte divisão do trabalho, que pode fazer com que as pessoas se sintam como um "número" ou apenas uma "parte da engrenagem".

Em contraste, o trabalho manual recebe qualidades que reflectem estes pontos negativos. Em primeiro lugar, permite que as pessoas trabalhem no exterior — e muitas pessoas mudaram de vida para trabalhos que incluem construção — e permitem exercitar o corpo. Em contraste com os estudos que salientam a vulnerabilidade física associada ao trabalho manual, os artesãos tendem a descrever este envolvimento corporal como algo que "sabe bem", fortalece os "músculos", os faz sentir "em forma" e "bem no próprio corpo" ou que ajuda a evitar "engordar".

Em segundo lugar, o trabalho manual é valorizado pelo seu carácter "concreto". Com isto queremos dizer que o produto da actividade é palpável, tangível, o que torna mais fácil equiparar os esforços empreendidos com o resultado que produzem. Este aspecto concreto contrasta com os sentimentos associados ao trabalho anterior, de se perder horas em "reuniões intermináveis", em reflexões que podem durar "horas e horas" sobre assuntos que os entrevistados criticam como sendo "superficiais", "artificiais", "abstractos" ou "excessivamente complexos".

Joëlle, gerente de formação que se tornou padeira, sublinhou que tinha a impressão de "acabar o trabalho tarde [...] para não fazer nada". Esta actividade, em que, no final do mês, "ainda ganhava 5500 euros", mas sem saber "quem estava a beneficiar", é muito diferente do seu novo emprego: "Todos os dias alimento pelo menos uma centena de pessoas."

Por fim, a actividade manual permite aos trabalhadores supervisionar todas as fases da produção, o que é valorizado em oposição a uma divisão demasiado marcada do trabalho. O desafio reside na possibilidade de beneficiar de uma maior autonomia, tanto técnica (dominar todas as tarefas necessárias para fazer o produto) como organizacional (não depender de outros para levar a cabo a sua actividade).

Há uma proporção muito elevada de trabalhadores que mudaram de profissão que valorizam a autonomia profissional. Esses trabalhadores tornaram-se independentes a muito curto prazo, em comparação com os trabalhadores de escritório. Deste ponto de vista, o acesso à independência surge como uma condição essencial para a reconversão profissional no comércio artesanal.


Exclusivo PÚBLICO/The Conversation
Antoine Dain é doutorado em Sociologia na Universidade Aix-Marselha

Sugerir correcção
Ler 3 comentários