Imigração: a mudança de paradigma

A imigração tem estado presente de forma incipiente no debate público; mas eis que, em 2023, o tema irrompe definitivamente, alimentado por duas tragédias.

A par de outros países da Europa Ocidental, tais como a Espanha, a Itália ou a Irlanda, Portugal tem um historial sobejamente conhecido de emigração. Entretanto, nas últimas décadas do século XX, o paradigma mudou: Portugal tornou-se um país de migrações que acolhe imigrantes mais ou menos qualificados, refugiados provenientes de zonas de guerra, investidores imigrantes, estudantes imigrantes e outros perfis. Não obstante, a imigração tem estado presente de forma incipiente no debate público; mas eis que, em 2023, o tema irrompe definitivamente, alimentado por duas tragédias.

A morte de dois imigrantes indianos num incêndio e um ataque mortal perpetrado por um imigrante afegão têm vindo a expor a polarização que existe na sociedade portuguesa e no debate político sobre a questão da imigração. No polo da esquerda radical, circula uma visão dum mundo sem fronteiras e de convivência étnica pacífica; e, no polo da direita radical, é defendida uma “Europa fortaleza” contra o modelo globalista multicultural. Este contexto demonstra como é ingénuo pensar-se que Portugal, país supostamente dado a “brandos costumes” (um conceito vago e historicamente discutível), está imune a certos fenómenos sociais e políticos que se observam no resto da Europa há décadas.

O tema da imigração não é, contudo, um tema de nicho; é um tema fraturante que invade todas as esferas para além das posições mais radicais à esquerda ou à direita. A imigração não é apenas discutida de forma acesa entre partidos como o Chega e o Bloco de Esquerda. O PSD e PS têm chocado também neste âmbito, nomeadamente quando Luís Montenegro e Carlos Moedas defendem a aplicação de políticas de imigração mais reguladas e seletivas, apelando a uma consideração pelas necessidades específicas de mão-de-obra do país.

Apesar das críticas de Marcelo Rebelo de Sousa às declarações dos novos líderes do PSD, a verdade é que este posicionamento não tem nada de novo, bastando relembrar declarações de ex-líderes, como Passos Coelho e Cavaco Silva.

Na política europeia, há muito que a imigração deixou de ser um tema circunspecto a forças políticas minoritárias, até porque muitas dessas forças passaram a ser maioritárias nos respetivos parlamentos. Por outro lado, o centro-direita e o centro-esquerda, pressionados pelo sucesso eleitoral dos mais radicais, começaram a abraçar o tema e, nalguns casos, até a pôr em causa o sucesso do modelo de integração multicultural, como fizeram no passado Angela Merkel, Nicolas Sarkozy e David Cameron.

A imigração é um acontecimento transformador dos países e das suas populações, impactando de forma interligada as dimensões sociais, económicas e culturais, especialmente em países com invernos demográficos, como é o caso português. Veja-se o caso da infame crise da habitação, em que Lisboa acompanha o preço do metro quadrado de outras capitais europeias, mas regista um salário médio incrivelmente baixo. Se esta realidade aflige portugueses altamente qualificados, compreende-se que possa ser completamente insustentável para imigrantes menos qualificados e menos integrados, como as vítimas do incêndio na Mouraria que viviam em condições indignas.

Outro exemplo relacionado é o da gentrificação, em que imigrantes mais abastados, os chamados “nómadas digitais”, são acusados de alterarem a identidade cultural de determinado bairro ou rua e, simultaneamente, de contribuírem para a escalada de preços dos imóveis.

Com a mudança de paradigma, antevê-se que o tema da imigração marque cada vez mais a agenda política de todo o espectro político. Neste caso, como noutros, o excecionalismo português é uma miragem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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