Tornar o mercado de produtos alimentares mais justo para consumidores e produtores

O que fazer? A regulação de preços, seja de produtos alimentares, seja de fatores de produção, o que pode ser feito por diversas vias, não pode deixar de estar em cima da mesa

O aumento dos preços dos bens alimentares, que se situa em mais de 20% no último ano, bem acima dos 8,2% da inflação geral, aflige a vida da grande maioria das pessoas que vivem no nosso país. As recentes inspeções da ASAE sobre supermercados de grandes cadeias de distribuição vieram revelar a existência de elevadas margens brutas de comercialização em vários produtos alimentares, para além de outras práticas ilegais e abusivas envolvendo a comercialização destes bens.

A questão do caráter abusivo de tais margens e práticas ganhou relevância no espaço público como se se tratasse de uma novidade e viu a sua projeção reforçada pelo contexto de brutal encarecimento desses produtos alimentares. Mas é esta uma questão nova?

Não. A única novidade é o contexto em que ela é colocada.

Logo após a divulgação das conclusões da ASAE, a CNA afirmou que estas apenas confirmam uma situação que há muito tem denunciado e para a qual tem exigido uma solução urgente. Situação que se caracteriza, no essencial, pela enorme força de mercado detida pela grande distribuição junto da produção agrícola, a que se soma a força de mercado, e a natureza especulativa do mesmo, detida pelas multinacionais de matérias-primas e fatores de produção (adubos, fitofármacos, sementes, cereais).

A força de mercado da grande distribuição advém do facto de ser constituída por poucos fornecedores para uma multitude de consumidores, ao mesmo tempo que se constituem como um punhado de compradores para muitos produtores. Essa força de mercado advém ainda de atuarem na resposta a necessidades humanas insubstituíveis e fundamentais, pelo menos enquanto continuarmos a precisar de comer.

Na verdade, a formação de preços enquanto um mero jogo de equilíbrio entre a oferta e a procura pode ser uma abstração muito útil em introduções ao funcionamento da economia, mas só é válida com pressupostos que não se verificam em muitos mercados reais, muito menos no da alimentação: muitos vendedores e muitos compradores, ausência de choques externos, e possibilidade de optar entre diferentes bens para obter a mesma utilidade. Ninguém pode prescindir da alimentação, tal como não é opção para ninguém prescindir de cuidados de saúde, habitação, luz, gás ou aquecimento.

Nenhuma novidade até aqui, tal como não há na resposta que instituições transnacionais, governos e agentes do mercado dão perante tal situação: é o mercado a funcionar. Nem é “o” mercado, é este mercado e como ele está organizado, nem funciona como era suposto, como agora se torna mais evidente perante os choques externos, os reais e os especulativos, por muito que custe aos que insistem em tratar a economia como uma mera contabilidade de mercearia. A satisfação das necessidades vitais das pessoas, a dignificação das suas vidas, deve ser sempre o critério de que a política não prescinde, e é a este critério que se deve sujeitar o mercado, e não o contrário.

Após a divulgação pela ASAE de alguns resultados das suas ações, logo se tratou de mistificar a questão da organização e funcionamento do mercado de produtos alimentares, apresentando-a como um exercício de passa-culpas entre grande distribuição, transportadoras, agricultores e Governo, com conceitos opacos e números parciais, induzindo conclusões simplistas e obscurecendo a verdade de fundo.

Pelo meio, os grupos proprietários das maiores cadeias de distribuição viram lucros operacionais do comércio a retalho aumentar, totalizando, em 2022, 563 milhões de euros no caso da Sonae (mais 36 milhões que em 2021), e 241 milhões nos primeiros nove meses (mais 27 milhões que em 2021), no caso da Jerónimo Martins. Isto num contexto em que o consumo das famílias, em termos reais, recuou pela primeira vez em dez anos.

No tal jogo do passa-culpas, a grande distribuição diz que não aumentou as margens, ou seja, as taxas de rendimento extra face aos custos, mesmo tendo os preços pagos aos produtores subido, em alguns casos, 50 ou 70%. Fácil é de ver que, aplicando a mesma margem a um valor 50 ou 70% maior, o valor resultante vai ser maior também, embora a relação entre o numerador (o que se vendeu) e o denominador (por quanto se comprou) se mantenha.

A CNA tem denunciado há muito as elevadas margens praticadas pela grande distribuição, o modo como esmagam os preços pagos à produção, a dependência cada vez maior que o mercado dos bens alimentares tem relativamente às grandes cadeias de distribuição. E também os impactos que a política de industrialização da produção agrícola, da concentração da terra e de pressões especulativas e financeiras sobre o uso do solo têm sobre a agricultura e a capacidade de produzir alimentos saudáveis, em sistemas de produção em harmonia com o ambiente, o território, as necessidades e a saúde dos consumidores.

No contexto que vivemos, os consumidores são os principais prejudicados. Mas os agricultores também perdem, mesmo que vejam os preços pagos à produção aumentar. No final de 2022, o INE veio revelar uma estimativa de descida do valor acrescentado bruto agrícola em 380 milhões de euros, resultado em grande medida devido ao aumento dos custos dos fatores de produção (26,6% no geral, sendo de 31,6% nos alimentos para animais, 34,5% na energia e 38,6% nos adubos e corretivos).

Também a seu tempo, os pequenos e médios agricultores, e as suas organizações, denunciaram os brutais aumentos dos preços de fatores de produção essenciais, que já se vinha notando meses antes do agravamento da guerra na Ucrânia, com subidas de 40% nos combustíveis, e com adubos, fitofármacos e outros fatores de produção a dobrarem e a triplicarem de preço. Denunciaram o caráter especulativo também destes aumentos, devido aos mecanismos de formação de preços nos mercados internacionais.

O elemento persistente mais relevante é o de aquilo que é pago pelo consumidor, apenas cerca de 25% chega ao produtor.

Se o problema de fundo é o da organização do mercado, o que se pode fazer para a alterar? A regulação de preços, seja de produtos alimentares, seja de fatores de produção, o que pode ser feito por diversas vias, não pode deixar de estar em cima da mesa, sobretudo nas circunstâncias em que estamos. Mas há outras medidas possíveis, há muito reclamadas, e cuja importância agora se reforça, como a concentração da compra de fatores de produção, a adoção de uma lei que proíba as vendas com prejuízos ao longo de toda a cadeia produtor-consumidor, a dinamização dos mercados locais (contrariando a moda da gourmetização gentrificadora) e a adoção de uma estratégia audaz de compras públicas que valorize a produção local e sustentável.

Com estas e outras medidas é possível fazer chegar alimentos mais baratos e com mais qualidade aos consumidores, garantindo uma mais justa distribuição do valor ao longo de todos os elos da cadeia produção-distribuição-consumo, contribuindo para um rendimento digno para quem produz. Até para que haja mais produtores, diminuindo a dependência alimentar face ao exterior.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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