No piano de Sokolov estão as fundações do sublime

A transcendência que nos oferece quando se apresenta em palco é o resultado de um infindável percurso de superação em que detalhe algum é deixado ao acaso.

Foto
Pianista Grigory Sokolov (na fotografia, recital na Casa da Música, em 2011) PAULO PIMENTA

A chegar aos 73 anos, Grigory Sokolov mantém-se em plena forma (senão melhor do que nunca), e por mais que saibamos que os seus concertos são momentos únicos, não conseguimos deixar de nos surpreender com cada um deles.

O programa que apresentou esta semana na Gulbenkian e na Casa da Música compôs-se de uma parte barroca e outra clássica, sendo que a já habitual terceira parte não anunciada a completou com obras românticas, encerrando com um arranjo (romântico) de um prelúdio de Bach (da autoria de um compositor ucraniano), num círculo perfeito.

Henry Purcell (1659-1695) preencheu a primeira parte, sem espaço para palmas (o mesmo não se pode dizer do generoso contraponto de tosse), num denso encadeamento de variadas peças mais ou menos conhecidas (Ground in Gamut, Z. 645; Suite n.º 2 em Sol menor, Z. 661; A New Irish Tune [Lilliburlero], em Sol maior, Z. 646; A New Scotch Tune em Sol maior, Z. 655; Trumpet Tune, called the Cibell, em Dó maior, Z.T. 678; Suite n.º 4 em Lá menor, Z. 663; Round O em Ré menor, Z.T. 684; Suite n.º 7 em Ré menor, Z. 668; Chacone em Sol menor, Z.T. 680), a que Sokolov imprimiu algumas acentuações porventura menos consensuais. O que então mais se destacou foi a variedade da articulação numa construção arquitectónica de enorme consistência.

Em pleno contraste, após um longo intervalo, Sokolov regressa com um Mozart de linhas paradoxalmente aveludadas e cristalinas. O primeiro andamento da Sonata em si bemol maior K333 foi gerido dentro de uma gama dinâmica relativamente estreita e controlada, como se a intensidade fosse doseada em ínfimos intervalos, com o primeiro tema um pouco menos leve e mais articulado na reexposição do que na exposição, contrastando com um segundo tema talvez um pouco mais velado no final.

Se, no segundo andamento, a paleta dinâmica foi ligeiramente ampliada num crescendo poderosamente controlado (ocorrido antes da repetição da exposição) e o tempo sabiamente gerido com inesperadas suspensões, no terceiro a surpresa chegou-nos da imensidão tímbrica conseguida por Sokolov (aspecto que o pianista havia, de certa forma, preparado já na repetição da reexposição do segundo andamento, um pouco mais escura).

O inevitável silêncio no final da sonata deu azo a que o público não contivesse alguns aplausos, rapidamente interrompidos pelo Adágio em si menor K 540, em que a gestão do tempo foi provavelmente o elemento privilegiado.

Teria já sido um concerto memorável, mas ninguém espera que um recital de Sokolov se cinja às obras anunciadas. Brahms (o segundo dos 3 Intermezzos op. 117), Chopin (a segunda das 4 Mazurkas Op. 30, a segunda das 4 Mazurkas op. 68 e o vigésimo dos 24 Prelúdios Op. 28) e Rachmaninov (o segundo dos 10 Prelúdios Op. 23) preencheram o esperado ritual processional em que o pianista sai de palco e volta a entrar, prolongando as merecidas palmas com que o fiel público o saúda.

A despedida foi feita com o arranjo (em si menor) que Alexander Siloti (1863 – 1945) fez do Prelúdio BWV 855 em mi menor do primeiro livro do Cravo Bem Temperado. Se o acto de encerrar o concerto com música barroca retrabalhada por um compositor nascido perto de Kharkiv contém alguma mensagem para além de toda a generosidade já colocada na forma como Sokolov partilha a sua música, não sabemos. O que não podemos mesmo ignorar é que a transcendência que nos oferece quando se apresenta em palco é o resultado de um infindável percurso de superação em que detalhe algum é deixado ao acaso.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários