De Kharkiv ao Donbass: onde se define o futuro da guerra
As populações que permanecem na linha da frente dos combates habituaram-se aos sons da explosões e vivem entre bunkers e o pouco tempo em que lhes é permitido sair
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Reproduzir com somQuando se ouve ao longe um assobio é tempo de correr. Ninguém sabe onde vai cair a próxima bomba e só há poucos segundos para encontrar abrigo. Todos se apressam até qualquer sítio que julgam seguro e quase imediatamente se sente o estrondo, mais próximo ou mais distante, a abanar corpos e edifícios. Quem sobrevive regressa para a luz do sol veranil e põe-se novamente à espera. Até que recomeça tudo outra vez.
Severodonetsk é hoje uma cidade em suspenso, deserta e destruída, expectante pelo desfecho da batalha entre russos e ucranianos que dará a quem ganhar uma vitória fundamental para o curso futuro da guerra.



No Leste da Ucrânia, onde a guerra se intensifica, morrem até 100 soldados ucranianos todos os dias, diz Zelensky
Na frente militar, Moscovo intensificou a ofensiva no Donbass, com as tropas a avançar na frente de Lugansk
A cidade de Severodonetsk é uma das prioridades da Rússia, que ainda não conseguiu invadir aquela parcela de território, apesar do ataque em quatro frentes
Desde o início da guerra, há 92 dias, já morreram perto de 4000 civis na Ucrânia, confirmou a ONU
A batalha decorre há semanas. As tropas ainda não se encontraram cara a cara, mas os projécteis de artilharia sobrevoam diariamente as ruas da cidade.

Das 120 mil pessoas que viviam em Severodonetsk antes da guerra, sobrarão agora umas 10 mil

A sua existência é furtiva, feita entre corridas constantes para os abrigos

Na cidade não há água, não há electricidade e o comércio está fechado
Quando as bombas dão algum descanso, ainda há autocarros de retirada que permitem uma tentativa de fuga. Quem permanece lamenta que os militares ucranianos guardem tanques e outro material bélico em plena zona urbana, o que torna os bairros habitacionais vulneráveis a ataques. Dia após dia, Severodonetsk tem sido destruída a pouco e pouco.


Todo o Donbass que ainda não está ocupado pelas tropas russas é um território que se esvazia de gente enquanto as forças ucranianas se escondem nas centenas de trincheiras e aguardam pelo inimigo. Em certos locais, como perto de Izium, entre uns e outros há apenas um descampado não maior do que dois quilómetros. Os bosques e pequenos conjuntos de árvores servem de abrigo e são também alvos preferenciais para as balas de lado a lado.

Nos últimos dias, a batalha pelo controlo da região Leste da Ucrânia desenrola-se em grande parte na estrada que liga Bakhmut a Lisichansk

Os arredores de Severodonetsk é o local onde os ucranianos mantêm as linhas de artilharia com que têm conseguido manter os russos à distância

Se a tropa da Rússia conseguir dominar o caminho, os soldados ucranianos e Severodonetsk ficam cercados. Daí, os invasores podem prosseguir para Kramatorsk e Sloviansk, conquistando todo o Donbass
Os ataques intensificaram-se na última semana. E não é só a estrada que é bombardeada: em Bakhmut, um míssil atingiu um prédio de habitação e morreram pelo menos sete pessoas, entre as quais uma criança. Os moradores desconfiam que os russos queriam atingir o edifício ao lado, onde estavam militares ucranianos. Quando os bombeiros chegam também têm de procurar abrigo, porque as bombas não param de cair.
Nos últimos dias, a batalha pelo controlo da região Leste da Ucrânia desenrola-se em grande parte na estrada que liga Bakhmut a Lisichansk, cidade nos arredores de Severodonetsk onde os ucranianos montaram as linhas de artilharia com que têm conseguido manter os russos à distância.












Por este motivo, a estrada está repleta de artilharia pesada ucraniana. Tanques, camiões e foguetes Grad e outras armas povoam o percurso. Os aviões russos fazem voos rasantes para tentar destruir este material e as posições inimigas.


Os militares ucranianos vão repetindo a importância das armas ocidentais para contrariar a ofensiva russa e mostram-nas nas trincheiras ou nos checkpoints de estrada. Transportar este armamento para a frente de guerra é uma tarefa delicada. Faz-se geralmente em carrinhas descaracterizadas ou camiões de obras, preferencialmente durante a noite e apenas com os faróis nos mínimos para que se reduzam as hipóteses de os carregamentos serem alvejados pelos russos.
Porém, a estratégia não está isenta de outros riscos. Alguns veículos que transportam armas são vítimas das armadilhas deixadas nas estradas pelos próprios ucranianos, como as vigas de ferro antitanque e os acidentes rodoviários não são incomuns.

Enquanto o Donbass continua a mergulhar no caos e na incerteza, mais a Norte retoma-se a normalidade do pré-guerra

Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, que a Rússia bombardeou continuamente desde o início da ofensiva, mas que não chegou a ocupar

Já há trânsito nas ruas, os supermercados e restaurantes estão abertos, as empresas estão novamente a funcionar e as pessoas voltaram aos passeios
O Exército ucraniano declarou a libertação dos arredores da cidade, mas o território mantém-se instável. Ficaram minas espalhadas por estradas e terrenos e ocasionalmente ainda há bombardeamentos.
O perigo mantém-se com os bombardeamentos, como o que matou um homem na casa dos 40 anos pouco depois de sair do bunker onde se tinha abrigado. Os jornalistas chegam ao local cerca de uma hora depois e testemunham a dor dos pais. A mãe chora com as mãos entrelaçadas e o pai está em choque, sem reacção. O homem vagueia com ar distante e acaba por se sentar num banco. A mulher aproxima-se e limpa-lhe duas lágrimas do rosto.


Em Kharkiv e nas aldeias em redor, onde são poucas as casas que sobram de pé, predomina um sentimento de traição. A Rússia fica mesmo ali ao lado, o russo é a língua que toda a gente fala, há laços culturais, familiares e económicos fortes com o outro lado da fronteira. Porquê?, pergunta-se.

Como o russo é a língua predominante, entre as autoridades paira sempre o receio de haver colaboracionistas ou infiltrados na cidade

A polícia fiscaliza o cumprimento do recolher obrigatório e patrulha as ruas com minúcia

Um homem de cigarro na mão é surpreendido por uma brigada e parece espantado pelas perguntas que lhe fazem
Declara que estava apenas a apanhar ar, mas não segue em liberdade antes de mostrar detalhadamente todos os seus documentos.












Durante o dia, a força especial de polícia divide-se entre tarefas próprias de um tempo de guerra e outras mais corriqueiras. Os agentes tanto recebem solicitações para que uma brigada vá desarmar minas deixadas por explodir como investigam denúncias de crimes correntes.


Um homem é parado no meio da rua para ser revistado, suspeito de tráfico de droga. A busca revela-se infrutífera. Pouco depois, a polícia desloca-se a casa de um homem acusado de bater na mulher. Sem elevador, são 15 andares para subir a pé. Quando se chega ao topo, as queixas da mulher confirmam a suspeita de violência doméstica.
À noite, a vida recolhe novamente às caves. O eclodir da guerra na cidade fez sair cerca de 70% dos 1,4 milhões de habitantes, a maioria em direcção a Lviv ou ao estrangeiro. Mas muitos milhares permaneceram escondidos nos velhos abrigos antibomba de origem soviética ou nas estações de metro.
No bairro Horizonte, um dos mais bombardeados de Kharkiv, os abrigos são extensos e labirínticos, prolongam-se pelas caves de vários edifícios e albergam dezenas de famílias há muitas noites.

Em tempos de paz, muitas pessoas que povoam estes espaços nunca se tinham visto

Apenas se conheciam de encontros rápidos nas escadas ou a passear os cães

A guerra forçou-as a partilhar todos os aspectos da sua existência

Todos os momentos para brincar ao ar livre são preciosos
Pelos corredores que vão acusando a passagem do tempo há cortinas que dividem os diferentes espaços onde as pessoas se concentram. Ali cozinham e jantam, ali vêem filmes no computador e dormem, ali gritam juntos o “Glória à Ucrânia!” que se tornou símbolo de orgulho nacional.