Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos

A nossa República e a nossa democracia tiveram origem em acontecimentos em que militares desrespeitaram ordens. Foi assim em 1910 e 1974 – e essas desobediências são hoje feriados nacionais.

Pode um militar desrespeitar uma ordem?

Em nome da sagrada disciplina, todas as leis militares nos dizem que jamais.

Como em quase todas as leis (tirando, talvez, as leis físicas), a resposta correcta é antes um rotundo depende. Depende do estado a que chegámos.

A nossa República e a nossa democracia nasceram e devem a sua origem a acontecimentos em que um colectivo de militares desrespeitou ordens. Foi assim tanto em 1910 como em 1974 – e essas desobediências são hoje comemoradas com dois feriados nacionais.

Muito embora não estejamos perante a mesma situação, o nosso regime muito deve à insurreição de corajosos militares, depois de suportarem anos de ordens injustas e após provas dadas, ao procurarem cumprir sempre todas as missões. A sua coragem revelou-se precisamente porque não havia outra forma de se ouvirem e fazer o regime mudar, para impedir que injustiças maiores continuassem a ter lugar.

O que devem então os militares fazer se, conhecendo melhor que ninguém as máquinas do navio, constatam que não é possível zarpar? E se a cadeia de comando não os ouve? E se tudo isto acontece repetida e sistematicamente e não há qualquer perspectiva de que venha a mudar?

As leis humanas, porque são convenções, acabam sempre por ceder perante as leis físicas.

Se o navio não tem os dois motores, não tem os geradores, apresenta elevado risco de incêndio, entre muitas outras coisas, poderá ser exigível que, em tempo de paz, os homens zarpem, desde que lá vá um rebocador dar um empurrãozinho?

Felizmente temos quem nos salve.

O chefe do Estado Maior da Armada, enervado, irreconhecível, veio com pressa "impedir que isto alastre".

Como? Tratou ele de verificar se o que a guarnição alegava era verdade? Há outros NRP no mesmo estado do Mondego?

Melhor que ninguém, ele lá saberá. Mas não foi essa a urgência.

Reagiu a quente, concluiu que a culpa é da indisciplina e que a falta de meios não "está em cima da mesa" e garantiu que ia ao Funchal "ouvir a sua guarnição".

Como militar, parece ter tentado cumprir a sua promessa. Mas só com a parte menos importante. Foi lá, mas não os ouviu – ralhou-lhes.

Apressado, chamou as televisões, ordenou que lá colocassem um púlpito com sistema de amplificação sonora, mandou a guarnição formar no convés, puxou o chicote atrás e fê-lo rasgar as costas dos marinheiros da Bounty, perdão, do NRP Mondego.

Ficámos a saber que a Marinha "não pode perdoar" e que tudo isto vai ficar "marcado na nossa História". Bateram-lhe a continência e saltou para fora do navio, onde aproveitou para revelar aos jornalistas detalhes classificados sobre a missão que ficou por cumprir.

Os desordeiros permaneceram, formados, caladinhos, e com a honra a sangrar em público, enquanto os navios lá continuam velhinhos, avariados e com falta de peças, a meter água. Pelo menos assim aprendem que não podem abrir a boca, algo muito útil para não se afogarem, em caso de o navio ter mesmo de ir ao fundo. Assim se impõe disciplina na Armada Portuguesa.

Para marcar uma posição de força, tropeçou em si mesmo dando a imagem do oposto.

Aprendemos que os navios de guerra são "muito redundantes" que "podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança." Só não percebemos onde está a redundância num navio que perdeu um dos dois motores e o que ainda funciona está cheio de problemas.

Os navios de guerra têm sistemas tão redundantes que o comandante do navio patrulha tinha ordens para regressar a qualquer momento se, algures entre as vagas de três metros, o único motor ainda disponível se lembrasse, coitado (com um atraso de 2000 horas de manutenção), que não era assim tão redundante como lhe ordenavam que fosse.

Mas há mais redundâncias, há sempre umas bandeirinhas a bordo para pedir socorro ao navio espião-russo, em caso de necessidade. Não têm todos eles treino em homógrafo afinal? Pelo menos aí provaríamos a todos os nossos aliados que temos os porões cheios de disciplina, em vez dos resíduos oleosos altamente inflamáveis que parece que lá se costumam acumular (sempre sem pôr em causa a segurança dos NRP, claro está).

Se chegarmos ao ponto de termos de exigir disciplina para evitar que se saiba que não há meios, perdemos tudo, a confiança dos homens e a disponibilidade dos meios.

Nenhum subordinado pode cumprir uma ordem no vácuo nem o dever de obediência é absoluto. A disciplina anda de mãos dadas com a justiça e a adequada disponibilidade de meios e, neste caso, não se podem separar as coisas, uma resulta da outra.

Uma relação hierárquica é uma convenção entre seres humanos, na qual um aceita cumprir as ordens do outro e para isso lhe reconhece autoridade. Ora isto só pode acontecer enquanto for materialmente possível e enquanto for subjectivamente percebido como justo pelo subordinado. Se estas condições forem sistematicamente quebradas, não durará muito até se subverter a relação.

Foi assim em 1905 no couraçado Potemkin, quando os marinheiros se recusaram a comer. Também aí houve uma vistoria técnica à carne, feita a mando do comandante, e em que o disciplinadíssimo dr. Sergei Smirnov concluiu que a carne apenas precisava de ser lavada. Nada justificava a indisciplina, todos tinham de obedecer, também eles deveriam saber operar em modo bastante degradado.

Mas enfim, isto é apenas e só um caso de indisciplina.

Se assim é, investiguem as folhas de serviço dos 13 marinheiros. Serão eles um grupo de desordeiros com cadastro? Ou têm eles nos seus curricula medalhas e louvores que atestam a sua bravura e competência? É que faz toda a diferença.

Já agora, é bom que o poder político, que é quem num Estado de Direito manda no poder militar, fiscalize em permanência e criticamente o estado das nossas Forças Armadas. Afinal as instituições falham porque os homens que as compõem também falham e a gravidade dos erros cresce proporcionalmente com a grossura dos galões bordados nas fardas de quem as enverga.

Não tornemos tudo isto num novo caso Dreyfus, em que, a partir de certo ponto, já não interessava saber se ele era culpado ou não, pois ao reconhecer a sua justa inocência o exército francês considerava que passaria ele (o próprio exército) a ser o culpado. Que a nossa Armada não se coloque nessa desnecessária e perigosa posição.

Mais, lembremo-nos que estamos todos no mesmo barco e felizmente não há inimigos entre nós.

Não interessa de que lado estamos, se conseguirmos debater isto com a cabeça fria, talvez possamos aprender a ouvir-nos mutuamente e sair do estado a que chegámos, sem a necessidade de haver uma revolução a bordo.

Declaração de interesses: 1) sou amigo de um dos 13 militares envolvidos neste caso; 2) Este texto não foi escrito com base em qualquer informação privilegiada sobre o sucedido (apenas no que foi tornado público e nada mais); 3) tenho elevada consideração pelo almirante Gouveia e Melo ao conseguir recentemente que a grande maioria da nossa população tenha sido vacinada contra o SARS-CoV-2. Fica aqui o meu agradecimento público por esse feito logístico exemplar; 4) não faço ideia sobre em quem vou votar nas próximas eleições presidenciais.

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