O planeta onde estamos embarcados

A seca, em pleno Inverno, está a atingir a quase totalidade do território francês e em muitos locais já estão a ser impostas restrições ao consumo de água. Depois de um Verão escaldante, o Hexágono continua submetido a uma inclemência climática excepcional, nunca antes observada. Notícias desta situação alarmante são debitadas diariamente nos media franceses. O mesmo fazem os jornais italianos, mas para relatar exclusivamente os efeitos do desastre que atinge o seu bel paese, como se o problema fosse delimitado por fronteiras nacionais.

Aquém e além dos Alpes, o desastre é também este: tanto de um ponto de vista político como jornalístico, cada um destes países “nacionaliza” a sua seca como se ela se circunscrevesse aos territórios de um Estado. Quando o nosso horizonte nem abrange o vizinho europeu, imagine-se o grau de fechamento aos desastres climáticos transcontinentais. A retracção soberanista, nacionalista, securitária e reaccionária põe-nos a viver num mundo atrofiado, mesmo quando é mais do que nunca necessário passar à escala planetária. Reside aqui a razão fundamental de uma impotência que salta à vista.

O planetário, tal como ele é actualmente reclamado por um certo pensamento ecologista ainda minoritário (sim, o pensamento ecologista dominante continua de um modo geral centrado numa escala muito menor), é um conceito que a famosa académica indiana Gayatri Chakravorty Spivak, autora fundamental da crítica pós-colonial, discutiu pela primeira vez, em 1997, numa conferência na Suíça, sobre migração. A noção de “planetaridade” não tem ainda uma grande difusão, mas vai fazendo o seu caminho nalguns círculos. Por exemplo, a revista francesa Multitudes dedicou ao tema das Planétarités um conjunto de artigos que integraram o número 85 (Inverno de 2021).

Aí, é-nos dito com abundância de argumentos que planetaridade não é o mesmo que a globalização. Na perspectiva da globalização (para a qual continua a ser válida a distinção entre “local” e “global”), os problemas ecológicos colocam-se no plano dos modos de vida e não propriamente em termos de habitabilidade. A globalização suscita os cálculos dos recursos para gerir os fluxos produtivos, tendo sempre em vista a manutenção dos critérios de prosperidade. A globalização situa-se na escala das decisões políticas que revelam uma desproporção enorme em relação à escala da pertinência planetária. Esta desproporção limita que se tomem as medidas consideradas necessárias. A globalização, cuja história é a da centralidade dos humanos, só pensa na expansão do mercado, nas conquistas financeiras, nas engenharias logísticas. Trata-se de uma visão do mundo, destituída do potencial “de nos abrir o espírito a uma pluralidade de visões do mundo, do globo, da Terra, de Gaia”, como se diz no editorial da revista citada.

O devir planetário, que nos faz sentir embarcados numa órbita entre milhões de objectos astronómicos, exige portanto a superação da noção de globo, de mundo, de Terra, de modo a alcançarmos uma posição mais deslocada — mais descentrada — em relação à interioridade mundial e global (o que a as referências a Gaia, de Bruno Latour e outros já visavam), introduzindo assim uma exterioridade radical no modo como devemos encarar os nossos habitats. Este descentramento múltiplo é, antes de mais, um descentramento em relação às politiquices nacionais.

A planetaridade torna-nos estrangeiros para nós próprios. Por isso, na frente das existências planetarizadas estão os refugiados que atravessam ou tentam atravessar as fornteiras da Europa e dos Estados Unidos. Hannah Arendt já tinha percebido isso, quando designou “nós, os refugiados” precisamente como uma “vanguarda” que manifesta de maneira eloquente a crise do Estado-nação. Ao mesmo tempo, essa “vanguarda” forneceu a Arendt argumentos para uma crítica aos “direitos humanos” baseados nos direitos conferidos pela cidadania

Evidentemente, o conceito de planetaridade requer uma “governança” planetária. Mas isso, diz o americano Benjamin Bratton num dos textos da revista Multitudes, é o mais difícil de pôr em prática, como se vê na própria arquitectura do sistema internacional das Nações Unidas, que não passa de um federalismo que “pressupõe a saúde do Estado-nação” e “encara a organização do mundo como sendo principalmente uma questão de delimitação de parcelas de terra”. A planetaridade como resposta aos desafios ecológicos é uma viragem copérnica. E nem o pensamento ecológico mainstream tem estado à sua altura.

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