As duas Cidades: a Terrena e a Celeste

Os candidatos ao sacerdócio, nos seminários, são formados num plano mais sociológico e psicológico que dificulta alcançar o cume da vida espiritual, que é a santidade.

Hoje em dia é pouco provável que na Igreja, sacerdotes e leigos, se dediquem a ler os grandes clássicos de teologia e espiritualidade. Por exemplo, a obra de Santo Agostinho A Cidade de Deus, escrita nos inícios do século V, ou a obra de Santa Catarina de Sena O Diálogo, escrito no século XIV. Podemos também referir as Obras Completas de Santa Teresa de Ávila, do século XVI. Estas obras são património cultural e espiritual da Humanidade e têm como fundamento a Sagrada Escritura. É através delas que aprendemos a distinguir a Igreja de Jesus Cristo daquela “igreja” que não o é.

Na Cidade de Deus encontramos uma frase paradigmática que é do conhecimento de muitos: “Dois amores edificaram duas cidades. O amor de si até ao desprezo de Deus: a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si: a celeste”. De facto, trata-se de duas formas de edificar o mundo através do amor: no enredo das paixões, ou na caridade.

Esta citação leva-nos até à parábola do trigo e do joio, no Evangelho de S. Mateus, que aparece na sequência das parábolas sobre o Reino proferidas por Jesus. Fala-nos de um homem que tinha semeado boa semente num campo, mas, “enquanto os seus homens dormiam, veio o seu inimigo e semeou joio no meio do trigo, e foi-se”. À medida que o trigo crescia apareceu também o joio. Os servos perguntaram ao senhor do campo se queria que eles fossem arrancar o joio, mas, para surpresa destes servos, o senhor disse “não”. E justificou: “para que não suceda que, ao apanhardes o joio, arranqueis o trigo ao mesmo tempo. Deixai um e outro crescer até à ceifa” (Mt 13, 24-30). Significa que as boas e as más acções do ser humano caminharão juntas até ao final dos tempos. Sublinhamos aqui um pormenor importante desta narrativa: o joio é semeado enquanto os trabalhadores do campo dormiam.

Também na obra de Santa Catarina de Sena intitulada O Diálogo há um extenso capítulo sobre “O Corpo Místico da Igreja”, um pouco semelhante à Parábola que referimos, onde Catarina explica em que consiste o sacerdócio ministerial. Primeiro, descreve a excelência do ministério sacerdotal (nn. 110-120), para, em seguida, falar dos defeitos e da má vida de muitos sacerdotes e religiosos (nn. 121-130). Já nessa época, século XIV, os principais vícios destes ministros eram a impureza, a avareza e a soberba, mas, neste elenco de vícios reinava o pecado “contra-natura”. Portanto, no tempo de Catarina de Sena a Igreja e a sociedade estavam em muito mau estado, ela tinha conhecimento de que o pecado “contra-natura” se estendia muito para além das fronteiras eclesiásticas (n. 124). O seu Diálogo é uma espécie de relatório da época, escrito não por incumbência de investigação, mas por revelação divina.

Catarina enfrentou, também, o Cisma que dividiu o papado entre Roma e Avinhão e conseguiu repor o Papa legítimo em Roma. Pelo seu testemunho de vida cristã teve uma grande influência na sociedade e na política do seu país. Não nos faltam, portanto, exemplos de como dar a volta às grandes crises que se instalam em determinadas épocas.

A crise actual na Igreja católica deve-se a um corte com a Tradição, ou seja, muitos sacerdotes e leigos deixaram de estar em contacto com as biografias dos santos e os grandes autores espirituais; por isso mesmo, deixaram de compreender as linguagens do espírito. Os candidatos ao sacerdócio, nos seminários, são formados num plano mais sociológico e psicológico que dificulta alcançar o cume da vida espiritual, que é a santidade. O discernimento vocacional fica, assim, comprometido.

Na exortação apostólica Amoris Laetitia, o Papa Francisco, referindo-se às dinâmicas pastorais necessárias para o acompanhamento dos seminaristas, diz o seguinte: “Os seminaristas deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se limitando à doutrina. Além disso, a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo psicoafectivo. Alguns carregam, na sua vida, a experiência da sua própria família ferida, com a ausência de pais e instabilidade emocional” (n.203). O Papa defende a importância da família para o desenvolvimento equilibrado da identidade sacerdotal. Afirma, ainda, que é necessário “formar agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda de psicopedagogos, médicos de família, médicos de comunidade, assistentes sociais, advogados de menores e família, predispondo-os para receber as contribuições da psicologia, sociologia, sexologia e até aconselhamento” (n. 204).

Todo este suporte dirigido à formação vocacional nos seminários supõe uma enorme falha no acompanhamento espiritual. É certo, como afirma o Papa Francisco, que alguns pertencem a famílias desestruturadas e é necessário curar-lhes primeiro a instabilidade psicoafectiva. Mas não são todos. Se nos detivermos a ler os escritos de Santa Teresa de Ávila, os Escritos Sacerdotais de São João de Ávila, ou, até mesmo, a biografia de São João Maria Vianney (o Cura d’Ars), compreendemos melhor o que está em causa. Ou seja, estes gigantes da fé conseguiram obter uma visão integral do ser humano pondo em prática o caminho ascético na edificação das virtudes humanas, potenciadas pelas infusas, recebidas no Baptismo, e pelos dons do Espírito Santo. Não se detiveram na conquista das virtudes puramente humanas, mas conseguiram corrigir as paixões e os enredos próprios do mundo psíquico através do crescimento da vida espiritual. Sabiam muito bem distinguir o trigo do joio. Teresa de Ávila é uma das grandes doutoras neste assunto. É este trabalho que muitos dos orientadores nos seminários não sabem fazer. Permanecem numa espiritualidade minimalista respaldada pela misericórdia divina. Trata-se de um perigo que dificulta a inserção idónea dos sacerdotes diocesanos na sociedade e cultura actuais.

Na semana em que foi apresentado à CEP o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, foi aprovada em Espanha a “lei trans” que permite a adolescentes e jovens mudarem de género com grande autonomia decisória.

De igual modo, a International Planned Parenthood Federation tem implementado nas escolas, à escala global, um plano de educação sexual abrangente, através do qual crianças e adolescentes são induzidos a uma vida sexual activa. Os sacerdotes vão continuar a deparar-se com tudo isto nas respectivas paróquias. A única forma de não sucumbirem é saberem diferenciar bem o trigo do joio e qual o amor que edifica a cidade terrena ou a cidade celeste. Porque caminharão juntos até à ceifa.

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