“Num dia estava a brincar com os meus amigos, noutro fugia da guerra”: o diário de uma refugiada ucraniana de 12 anos

Em Tu Não sabes o que É a Guerra, Yeva Skalietska conta como foram os dias a fugir da Ucrânia e a viagem até à Irlanda, onde agora vive, com a avó. “Não conseguia acreditar que estava a acontecer.”

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Yeva Skalietska: “Num dia estava a brincar com os meus amigos e no outro estava a fugir da guerra” Ger Holland

Yeva Skalietska tinha acabado de completar 12 anos quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Às 5h do dia 24 de Fevereiro de 2022 acordou com um som que inicialmente lhe pareceu “o de um carro a ser esmagado em sucata”, escreve nas primeiras páginas do livro Tu Não Sabes o que É a Guerra, que chegou a Portugal em Outubro de 2022 pela Clássica Editora.

Durante breves segundos foi o que pensou que estava a acontecer, até despertar e chegar à conclusão de que na zona de Kharkiv onde vivia não havia nenhuma sucata. Nesse momento, percebeu que, afinal, o que se dizia sobre as intenções do Presidente russo, Vladimir Putin, não eram “só rumores”. Foi obrigada a deixar para trás o apartamento onde vivia com a avó materna Irina e a maioria dos seus pertences, à excepção de algumas roupas e do diário que começaria a escrever naquele mesmo dia.

“Num dia, estava a brincar com os meus amigos e no outro estava a fugir da guerra para outro país”, conta em entrevista ao P3. No total, não ficou mais do que 12 dias na Ucrânia, a viver em abrigos subterrâneos, na casa de amigos e até numa escola. À medida que os militares russos avançavam para leste, Yeva, filha de pais separados e que vivem fora do país, fugia com a avó para a zona ocidental. O objectivo era chegar à Europa.

A jovem, que só há pouco tempo conheceu a história de Anne Frank, conseguiu escapar à guerra e vive em Dublin, na Irlanda, desde Março de 2022. Um ano depois do início do conflito, Yeva sonha em regressar à Ucrânia para voltar a ver os amigos, apesar de saber que “aqueles que sobrevivem à guerra nunca mais serão os mesmos”.

Há quanto tempo escrevias neste diário antes de a guerra começar?
Comecei a escrever quando a guerra começou. Sabia que escrevia bem as composições dos testes, mas nunca pensei que poderia escrever um livro. Não estava interessada em escrever um diário, mas no dia em que a Rússia nos invadiu decidi fazê-lo. Percebi que era o meu lugar seguro e que podia partilhar as minhas emoções e, às vezes, quando não tinha ninguém com quem conversar, podia expressar o que sentia no papel.

Nestes primeiros dias, tinhas consciência de que estavas a deixar escrita uma parte da história, como fez Anne Frank com o seu diário, ou era só uma forma de te abstraíres do que estava a acontecer?
Eu não sabia nada sobre a Anne Frank, não sabia sequer que existiu. Só soube quem ela era quando cheguei a Dublin com o meu livro e me explicaram que era uma rapariga que viveu durante II Guerra Mundial. Só escrevi este diário para me distrair.

Quando é que pensaste que podia ser um livro?
Nos primeiros dias de guerra não pensei nisso. Mas quando conheci um grupo de jornalistas [em Uzhhorod, no Oeste da Ucrânia] que acabaram por ficar meus amigos e me disseram que uma editora queria publicá-lo é que me apercebi que o diário se poderia tornar num livro.

Em Tu Não Sabes o que É a Guerra, começas por dizer que toda a gente conhece esta palavra, mas ninguém sabe exactamente o que significa até viver uma. O que é a guerra?
A guerra é dor e sofrimento. Não sabes quando chega e quando acontece todos os planos que tinhas para a tua vida futura, para os próximos anos ou talvez até para o dia seguinte são destruídos.
Sentes que os teus sonhos são destruídos e não consegues perceber se é realidade ou apenas um pesadelo na tua cabeça. Depois, dia após dia, vês o horror e percebes que é tudo real.

Foi nisso que pensaste durante os primeiros dias? Que tudo não passava de um pesadelo?
Eu não conseguia acreditar que estava a acontecer comigo. As minhas mãos tremiam, os meus dentes batiam e a minha avó tentava acalmar-me porque se eu não parasse não íamos conseguir sair dali. A primeira coisa que tivemos de fazer foi deixar o nosso apartamento e ir rapidamente para o abrigo e isto tudo apenas dez ou 20 minutos depois de as primeiras bombas caírem.

No livro, contas que no segundo dia de guerra saíste de Kharkiv para casa de uma amiga da tua avó e depois descreves todo o teu percurso até chegares à Irlanda. Achas que se a tua avó não tivesse deixado a Ucrânia as coisas teriam corrido bem?
Ela sabia que tinha de me salvar. No sexto dia de guerra, quando um avião estava a largar bombas, apercebemo-nos de que tínhamos que sair da casa onde estávamos e ela sabia que tinha de me salvar porque não sabíamos o que nos ia acontecer. A minha avó fez o melhor.

O som dos bombardeamentos ainda está muito presente na tua memória?
Sim, especialmente o som dos aviões. Sei que já passou um ano, mas às vezes ainda tenho medo do barulho e penso em quando lá estive e em tudo o que aconteceu. Quando os aviões voam baixo, é muito assustador. Mas depois apercebo-me de que estou em Dublin e que está tudo bem.

Houve algum momento que tenha sido particularmente assustador para ti?
Sim, no sexto dia de guerra. Eu e a minha avó tínhamos saído de Kharkiv na véspera e durante a tarde soubemos que o nosso apartamento tinha sido destruído. Todas as memórias do que vivi lá, tudo o que eu amava, foi simplesmente destruído. E depois houve um momento em que pensei que estava perto de morrer: durante a noite, às 19h, quando avião após avião lançavam bombas nas casas das pessoas. Acho que foi um milagre não termos morrido.

Quando é que sentiste que estavas segura?
Ainda sinto esta pressão dentro de mim, mas quando cheguei à Irlanda percebi que a vida era totalmente diferente. Posso andar livremente e não tenho de me preocupar com o facto de uma bomba poder cair sobre a minha cabeça. Aqui as pessoas não sabem o que é a guerra.

Qual foi a tua primeira impressão da Irlanda?
Pensei que era um país pacífico e bonito. Quando chegámos, ficámos em casa de um casal que nos mostrou as redondezas e gostei muito da cidade [de Dublin]. Tudo é verde e não estou muito longe do mar. No Verão é um pouco frio, mas gosto. As pessoas são muito amáveis e estou a aproveitar todos os dias. Mas as notícias da Ucrânia ainda me perturbam.

A meio do livro dizes que os teus outros avós e tios ficaram na Ucrânia. Como é que achas que estarias a viver se tivesses ficado lá?
Alguns mudaram-se para outros países ou outras partes da Ucrânia, mas ninguém está em Kharkiv. Na verdade, nem sei se poderia estar na Ucrânia. Alguns dos meus amigos ainda lá estão e não consigo perceber como podem viver sem electricidade nem abastecimento de água. Sei que estudam através da Internet e que o professor apenas publica o que têm de fazer. Eu ficava tão assustada quando as bombas caíam que tinha ataques de pânico, por isso, ia ser difícil viver lá. Estaria constantemente a viver com medo.

Contas que sempre tiveste ligação à Rússia porque a tua bisavó é de Sochi e que a tua casa ficava na fronteira. Encontras alguma explicação para esta guerra?
Na verdade, não sei. Não consigo perceber porque é que nos invadiram, estávamos tão ligados ao povo da Rússia. Sou apenas uma criança, não consigo perceber.

Quando relatas o teu dia-a-dia, escreves sobre assuntos que talvez muitas pessoas da tua idade nunca tenham ouvido falar, por exemplo, o que são as armas químicas. Quando é que percebeste estas coisas?
Quando enfrentei a guerra, percebi [isto]. Normalmente, as crianças não têm de compreender estas coisas e gostam de brincar e ficar com os seus amigos nos tempos livres. Eu era assim. Mas, quando a guerra começou, as nossas vidas estavam em perigo e eu percebi que a coisa mais importante é sobreviver. Muitas pessoas continuam a lidar com os bombardeamentos e a proteger os seus bens, mas não compreendem que não podem levar o dinheiro, roupas e casas quando morrerem. A minha avó disse-me: ‘Não penses nas coisas ou na casa. Talvez um dia as consigamos ter de volta, mas não penses nisso agora.” Percebi, a partir dela, que a coisa mais importante é a vida.

Passaste a ser refugiada, uma palavra que, dizes no livro, encaras como um insulto...
Não uso essa palavra porque é muito difícil dizer que perdi a minha casa, que a minha cidade natal está destruída e que não tenho para onde ir. Num dia estava a brincar com os meus amigos e no outro estava a fugir da guerra para outro país.

Consegues imaginar voltar a viver na Ucrânia?
Sim. Provavelmente, quando a guerra acabar e tudo estiver reconstruído, talvez volte. Quero ter a minha educação na Europa, mas espero realmente poder voltar e ver os meus amigos e colegas de turma. Quero ver quanto eles mudaram e como estão.

Dizes que “aqueles que sobrevivem à guerra nunca mais serão os mesmos”. Sentes que a guerra te fez crescer?
Acho que não me fez crescer, mas percebi estas coisas que talvez as outras crianças não compreendem. Ainda tenho esperanças e sonhos para o meu futuro. Sonho em viajar pelo mundo, aprender línguas e estudar na Universidade de Oxford. Não conseguia compreender quando havia guerra em Donetsk e Lugansk. Mas, quando enfrentei isso, percebi que as pessoas que viviam assim nunca mais voltariam a ser as mesmas, porque compreendiam que o mais importante é a vida e que tinham de fugir e ir para outro lugar para encontrar um sítio seguro.

Dedicas este livro à tua avó. Como é que achas que os teus netos o vão ler?
Por acaso, uma das minhas principais razões para escrever o diário foi partilhá-lo com os meus netos e filhos. Acho que eles vão ler-me e compreender que a guerra é má e que temos de pensar no futuro e nas crianças que não deviam passar por isto. E também espero que os meus filhos e netos não cheguem a viver uma guerra.

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