Entre a utopia e a distopia digital: o novo espírito do capitalismo

Imagine que, dada uma redução dos postos de trabalho causada pela IA e robótica, há uma revolução no ensino e novos arranjos socioprofissionais num mundo com menos propriedade e mais acesso serviços.

You may say, I´m a dreamer
But I´m not the only one
I hope someday, you will join us
And the world will live as one

John Lennon

Caro leitor, caro cidadão, depois de ter passado pelos estados da matéria, sólido e líquido, imagine-se, agora, em trânsito para o estado gasoso, para o universo misterioso e enigmático do ciberespaço. Não vou viajar entre o cenário utópico de Star Trek e o cenário distópico de Matrix, vou apenas fazer algumas anotações que eu considero verosímeis nesta nossa transição para a hibridação complexa da realidade.

Imagine que, doravante, nessa fase de transição, o principal protagonista passa a ser a inteligência artificial (IA), sob múltiplas formas, desde a Internet das coisas (IOT) até às tecnologias de interface neuronal que fundem a inteligência humana com a inteligência artificial em direção a outras formas de pensamento e atitude, mesmo da nossa consciência mais íntima.

Imagine que uma parte substancial da nossa vida ativa está condicionada pelo regime climático do antropoceno e que daí decorrem severas medidas de sustentabilidade, algumas até de confinamentos periódicos e mobilidade reduzida, que se traduzem numa redução substancial de veículos de combustão interna substituídos por veículos autónomos elétricos como parte das medidas de mitigação às alterações climáticas.

Imagine que a nossa vida quotidiana decorre em cidades inteligentes e criativas e que, em nome da inteligência coletiva e do bem comum, se quisermos, em nome da digitalização e da analítica urbanas, somos objeto de uma vigilância constante, desde uma simples câmara de observação até às técnicas mais sofisticadas de reconhecimento facial e construção de perfis psicográficos.

Imagine que uma parte substancial da nossa vida profissional decorre em universo virtual imersivo no seio do dispositivo tecnológico denominado metaverso e que nesse âmbito temos a companhia privilegiada de assistentes de IA, com os quais interagimos, o que nos converte, cada vez mais, numa espécie de híbrido tecnológico de interação virtual.

Imagine que, em virtude de uma redução substancial dos postos de trabalho pela IA e a robótica, e o aumento correlativo do teletrabalho, se verifica uma revolução no ensino convencional e, também, na organização das profissões e dos mercados de trabalho, com o aumento da intermitência e a formação de novos arranjos socioprofissionais que juntam trabalho, recreação e lazer, num universo onde há cada vez menos propriedade e mais acesso e prestação de serviço.

Imagine que o envelhecimento, o desemprego de longa duração, o trabalho intermitente, a iliteracia digital, a pobreza e a doença crónica, o fluxo crescente de refugiados, fazem uma mistura de tal modo explosiva que o Estado-administração decide criar um rendimento mínimo garantido sob determinadas condições onde se inclui o cumprimento de regras mínimas de crédito social em áreas de economia do bem público e comum devidamente observadas e vigiadas pelo sistema geral de inteligência coletiva assessorada pela IA.

Imagine que o acesso a este rendimento mínimo garantido se faz através de uma conta bancária de moeda digital devidamente controlada pelo sistema tecnológico e financeiro, sendo que a gestão desta conta leva em devida consideração os comportamentos sociais que foram estabelecidos pelo sistema de crédito social, com o débito em conta das multas e penalizações que são aplicáveis.

Imagine que o desenvolvimento cada vez mais autónomo da IA, sob múltiplas formas, nos sobressalta e preocupa no que diz respeito às armas de destruição massiva, à emissão de moeda digital, à circulação dos criptoativos, à guerra cibernética e ao ciberterrorismo, de tal modo que estamos num número crescente de áreas à beira da confrontação e da guerra.

Imagine a vastidão do universo informativo do Big Data sob o comando da IA e das máquinas inteligentes, pense no universo corporativo do capitalismo de vigilância que lhe corresponde e interrogue-se sobre o caos informacional e comunicacional que resulta de uma IA que recolhe, trata, padroniza e recomenda em escala alargada sobre o nosso quotidiano; o que diria, neste contexto, o filósofo Habermas acerca da sua teoria do agir comunicacional e o que fazer no futuro próximo com a política regulatória da IA.

Não creio, apesar de tudo, que seja este o novo espírito do capitalismo, mas suspeito que as democracias liberais do ocidente têm aqui muito trabalho pela frente. Entre o Star Trek e o Matrix há muitas escolhas para fazer. Como sempre, a dose é o veneno.

O autor escreve segundo novo acordo ortográfico

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