Uma coisa é uma coisa, outra é outra

Nada tenho contra quem não goste de arte, tenho tudo contra quem queira cercear ou restringir a liberdade de criação artística. É aí e por aí que começam os totalitarismos.

Tenho para mim (melhor: filio-me entre os autores de diversa natureza, por vezes de posicionamentos antagónicos noutras matérias) que o teatro – para não dizer as artes em geral – se distinguem da realidade justamente porque são a representação (re-presentação: repetição de acção, re-apresentação desta) de alguma coisa e não a coisa real em si, a acção, mesmo que abstracta, onírica ou existencial. Claro que termos como teatro, cómico, farsa, e muitos outros, entraram no léxico metafórico sobre a realidade de factos. Mas quando estamos a falar de arte é de arte e não da apropriação dos seus termos para uso diferenciado. Tal como dizemos coração por sentimento ou mar de coisas por um vasto conjunto de objectos, em que pode acontecer nenhum ser sequer líquido.

Vem isto a propósito de uma tendência, importada recentemente dos Estados Unidos, que passou a ter-se por vanguardista, mas para mim neo-conservadorista (se se me permite o neologismo) porque pretende tornar estático o que é no que é. Nega a dinâmica dialógica de uma coisa poder ser outra ou, ao caso, apresentar-se, re-presentar, outra, que não aquela que é. Afirma-se a partir da ideia de que o ‘representador’ deve ser igual ao ‘representante representador-de-si-mesmo’. Ou seja, cada um não é livre de representar um outro, mas apenas representar-se a si mesmo. De tal modo que se teria de condenar, por exemplo, uma leitura em que o ódio entre os Montecchio e os Capuleto viesse de preconceitos racistas ou classistas e não de ódios familiares, por exemplo.

Vem isto a propósito dos incidentes ocorridos no São Luiz, em que se reclamou (com ‘circo mediático’) que a personagem se confunde com a pessoa que a faz (ao caso um transexual) e tem de ser o que é e não pode tomar o lugar (re-presentado) de outro. Trata-se de um absurdo prático em si, que me levaria a ter de achar por bem que para se interpretar o papel de um psicopata, se deveria recorrer mesmo à contratação de um psicopata; ou, em última análise do que seria ontologicamente tal “teatro”, para fazer o Romeu e Julieta teríamos de ter dois jovens adolescentes disponíveis para morrerem, aos pares, em cada dia de apresentação da obra; ou para falarmos da bomba sobre Hiroxima, fazer explodir diariamente uma bomba de hidrogénio diariamente, reconstruindo a cidade danificada, de cada vez, para cada sessão apresentada, que não, aí sim, representada.

Pressuponho que aqui já alguns me começaram a apodar de reaccionário, homófobo ou outros epítetos que, fora do contexto da realidade, nada significam, nem têm em conta o que estou a dizer de mais fundo. E, para que cessem histerias precipitadas e sem qualquer substância filosófica ou epistemológica, afirmo que, porque o digo, é que o não sou. Vejo mesmo a coisa pelo ângulo inverso: onde iríamos nós parar se a um homossexual masculino fosse interdito representar Casanova? Ou se a um democrata fosse indevido representar um nazi, em denúncia do próprio nazismo? Para mim, era o que mais faltava que um transsexual não pudesse representar uma mulher, porque nascera morfologicamente masculino! Como é desvario pensar que o actor (o que faz de outro), por ser heterossexual, estivesse inibido de interpretar a personagem de um homossexual!

Não é o incidente (patético – ou devo mesmo dizer pateta?) do que se passou no São Luiz que me preocupa, mas uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre tendências que, na prática, visam anular a arte como arte. É como se alguém dissesse, em 2023, que “quando ouço falar em arte, rapo da veracidade”, num pensamento tão pequenino e tão limitativo que não passa de uma mosca ao pé de um elefante, que não distinga Gaudí de um prédio dos subúrbios, desde que feito por si mesmo.

Repete-se: a arte, o teatro ao caso, não é a coisa em si, mas a substituição dela por uma narração/representação da mesma. A Guernica de Picasso não é o bombardeamento sobre a cidade espanhola, nem uma estátua de Diana é a mitológica deusa da caça. Representam-nas, evocam-nas. E convocam-nos a nelas pensar e por elas sentir.

A importância desta distinção é a mesma que nos permite distinguir entre um processo de imaginação e um processo de acção. Porque se uma e outra se inter-penetram, uma é a dominante e essa é a que transforma ou empresta à coisa ser o real-real ou o real representado, mesmo no extremo de um teatro naturalista. Imaginem só, em última instância, e por mais relativa que seja a fronteira que separa o que se chama um estado de lucidez consciente de uma ruptura psicótica, dizer-se que não se distinguem. Experimentem atirar-se de um 5.º andar e dizerem-se ser o Super-Homem para perceber a diferença. É que na primeira distinguimos o que é acontecimento real do que é a sua representação ou remediação pela arte ou pela nossa capacidade de imaginar e na segunda, confundimos a própria imaginação com o real e passamos ao delírio. Uma coisa é uma voz que me fala, outra a que ouço no meu cérebro, mas que é expressão (anómala) de mim mesmo, crendo que se trata de algo exterior que me dá ordens.

A estigmatização de géneros ou opções (ao caso servido como inspirador para este artigo), tanto vale de pés no chão, como a fazer o pino. Na vida real e subjectiva, cada um é (ou deve poder ser) o que quer, sem que que isso deva interferir nas opções de vestuário, ofício, decoração da casa ou o que mais seja… Para mim, a liberdade individual – desde que não interfira na liberdade individual do outro, que não vá contra ela – não tem mesmo limite. Por isso mesmo, como expressão elaborada dessa liberdade imaginativa, em última análise, a arte é sublime e é momento de expressão próprio e diferenciado em relação ao meramente vivencial, por mais importante que este seja. Nada tenho contra quem não goste de arte (salvo uma certa compaixão pela sua limitação sensorial e educativa), tenho tudo contra quem queira – seja qual o motivo invocado – cercear ou restringir a liberdade de criação artística. É aí e por aí que começam os totalitarismos. E os moralismos: sejam em nome do que se reclamem. São pérfidos.

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