Desencontros

Confesso a minha incapacidade para encontrar um rumo nas narrativas diversas e numa discussão sem apreciação rigorosa dos factos. Perplexidade absoluta.

Que mais dizer após o retrato semanal da nossa realidade (António Barreto, in PÚBLICO 28/1/2023)? Leitura obrigatória, constitui fruição da Liberdade, marca o valor da crítica construtiva, do apelo a fazer bem e, quando o exercício de bem governar claudica, são precisos avisos à navegação. É também o dever da boa imprensa: registo isento de factos e estímulo à reflexão e apreciação crítica. São a janela de esperança perante o ruído e a ausência de discussão serena de problemas e proposta de soluções. As crises na Saúde, Educação, Habitação, TAP, aeroporto etc., etc., as trapalhadas éticas, a infantilidade perdoada a responsáveis serão expressão de bom governo? Não, certamente.

Tempos difíceis, caro doutor, diria o meu amigo e doente, infelizmente já falecido, na sua visita anual pós-cirurgia. Personalidade invulgar, doutro tempo, marcava sempre a consulta para o fim da lista. Sabia que era, no novo tempo democrático, uma referência ética e de profissionalismo. Não comentava o presente, preocupava-se com o futuro, invocando valores, responsabilidade e disponibilidade de servir.

Recordo-o com saudade e respeito, um privilégio tê-lo conhecido. Mas temo que, como sociedade, tenhamos menorizado os seus e outros alertas. Tudo parece confirmar os piores receios. Confesso a minha incapacidade para encontrar um rumo nas narrativas diversas e numa discussão sem apreciação rigorosa dos factos. Perplexidade absoluta. E não nos faltavam problemas difíceis agravados pelas consequências, presentes e futuras, da guerra da Ucrânia, um absurdo incompreensível e inaceitável, para que tivesse irrompido no espaço público e, com estrondo, o problema da Jornada Mundial da Juventude (JMJ).

Numa tentativa de clarificação, analisemos o tema:

  • i) 2019: as JMJ foram apresentadas como vitória nacional pelo chefe de Estado, creio que bem acompanhado pelo Governo e pela Câmara de Lisboa, solidarizando-se todos com a proposta da Igreja Católica portuguesa e de muitos jovens. Para além dos benefícios financeiros expectáveis havia, na iniciativa, valores caros à sociedade portuguesa;
  • ii) a eclosão da pandemia mobilizou recursos, inteligência, tempo e preocupações, mas este objectivo não foi abandonado. A vida continuou, o Estado não parou e o país ultrapassou a crise, caminhando para a normalidade;
  • iii) uma dúvida: foi efectivamente nomeada alguma estrutura de missão para este projecto, coordenando a interacção do Estado com os promotores da iniciativa? Descobriu-se, recentemente, que havia, para além da hierarquia católica, dois núcleos de decisão, um representando o Governo e outro encabeçado pela Câmara de Lisboa. E uma perplexidade: porque não se seguiu o modelo de chefia unificada?
  • iv) qual é exactamente a posição da Igreja Católica? Organizadora? Mediadora, num diálogo inexistente? Justifica-se que, com a sobriedade e dignidade que a caracterizam e com toda a formalidade, que clarifique o programa, objectivos, o caminho percorrido e a percorrer, num espírito de cooperação para bem do sucesso da JMJ. Assunto demasiado importante e valores a preservar, bem para além da economia, turismo e visibilidade externa do país, que sobrelevam a refrega permanente e fútil que infectou a política portuguesa.

Será que haverá tempo e oportunidade para mudarmos de rumo? Espero que sim, temos essa responsabilidade, decisores políticos e cidadãos comuns, para ultrapassar este e os outros problemas que afligem a nossa sociedade. Há sinais de esperança, como na Saúde, com o registo de recuperação de actividade cirúrgica no SNS ultrapassando médias passadas, a nova orgânica directiva e escolha meritocrática do responsável, menor crispação entre os diversos sectores para o que contribuiu a postura dialogante do novo ministro.

Não podemos perder mais tempo. Será um absurdo indesculpável e irresponsável. Acho que todos perceberemos que caminhamos aceleradamente para um bloqueio das instituições. A minha geração sabe bem aonde isso conduziu, pois ainda cultiva a memória.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários