Conhecemo-nos na realidade virtual? (2)

A realidade virtual é inescapável como elemento do nosso futuro. O desafio será lidar com ela sabendo quem somos. Conhecendo-nos a nós próprios de forma a não nos perdermos nos seus labirintos mágicos

Prossigo e concluo a minha reflexão, iniciada ontem, à volta de We Met in Virtual Reality, documentário filmado na realidade virtual (RV) do jogo cibernético VRChat.

Numa época marcada pela contrafacção no teatro das redes sociais e pelo desligamento do real, em que telefones móveis e outros dispositivos (com tudo aquilo que nos dão e facilitam) alimentam uma profunda alienação (ainda mais inquietante quando esses gadgets estão nas mãos de crianças e adolescentes), é liminarmente desastroso o discurso laudatório perante a RV que o filme comporta.

Sabemos que a RV pode ser um lugar para uma actividade sobejamente criativa. Tal foi a relação de um visionário do cinema, Chris Marker, com o Second Life, famoso irmão mais velho do VRChat. Percebemos que um videojogo pode ir além do mero medium lúdico, como mostrou o artista visual Bill Viola na sua incursão no gaming na primeira década deste século (experiência com contornos filosóficos que no domínio da RV teria um aliciante potencial). Todavia, existem evidentes perigos quando o mundo virtual se impõe como sucedâneo da vida, nomeadamente numa altura em que a interpretação da RV como terreno endémico de jogos como o VRChat ou o Second Life está já ultrapassada.

A RV, entendida pelo sr. Zuckerberg para o metaverso, é mais uma proposta de extensão da vida ou de vida paralela, com um envolvimento sensorial aprofundado (já se estará para além da tela), sustentada por uma economia digital montada à volta de criptomoedas e NFT. Entretanto, os prejuízos colossais associados ao parto difícil do metaverso sonhado pelo criador do Facebook, ainda com muitas indefinições tecnológicas, e a crise actual das criptomoedas levantam copiosas dúvidas sobre esse modelo.

Porém, não é preciso ser Cassandra para saber que as sociedades humanas viverão também nas realidades virtuais, agravando-se o impacto dos algoritmos no tratamento de dados e o controlo político da opinião (a nossa pegada digital será maior), agudizando-se a desinformação (que só pode crescer com a distância perante o real) e os problemas de saúde mental e física de quem se ausenta da vida palpável clássica. A nossa relação com os outros e com os acontecimentos, as memórias, a comunicação, a criação... tudo será diferente. Da sociedade do espectáculo, de que falava Debord, passaremos ao espectáculo da sociedade. Tornar-nos-emos intérpretes de um espectáculo permanente e vivido socialmente, onde não faltarão veículos eficazes do consumismo, com todas as implicações para se falar de um novo estádio da sociedade capitalista. O indivíduo será como nunca uma imagem. Mais que espectador será actor mas sempre consumidor.

Para além dos malfazejos está claro que maravilhosos paraísos artificiais ficarão ao nosso alcance. Excelentíssimas paisagens, encontros surpreendentes, mares de sensações, que encontraremos do outro lado do portal, onde o avatar que somos não terá de ter as nossas limitações físicas (porque não voar, mudar instantaneamente de corpo ou de lugar?). Mas urgirá uma cibercultura consciente e saudável, que promova o equilíbrio entre os dois universos, real e virtual, e a noção de que o virtual, por mais interactivo e realista que seja, nunca será o real, e que a nossa relação com o espaço material que nos rodeia e com o nosso corpo é vital. Perder isso fará de nós menos humanos.

Com esta transformação civilizacional coloca-se o quesito de como cada um irá lidar com o carácter viciante da RV, onde tudo estará facilitado, ao contrário da realidade, que é complicada. Lidar no dia-a-dia com as mesmas pessoas em casa ou no trabalho é exigente. O virtual é e continuará a ser, por excelência, o território das fantasias e do hedonismo, colonizado ou até concebido por multinacionais ávidas em fazer-nos consumir. Quem manda em grandes negócios, como o sexo e os psicotrópicos (legais ou ilegais), capitalizará o maná de experiências imersivas cada vez mais avançadas, e fomentará um apelo constante para vivermos na RV, que decerto será habitada por formas crescentemente complexas de inteligência artificial, mais uma moeda com uma face luminosa e outra negra. Qual caixa de Pandora para as gerações futuras esta última. Lembram-se do HAL de Kubrick e Arthur C. Clarke?

A evolução científica e tecnológica sempre trouxe vivas discussões éticas e epistemológicas, e futurologias entre vantagens e desvantagens, ordem e entropia, associadas aos efeitos das invenções humanas. Toda uma dialéctica nervosa que costuma pacificar-se quando o novel fenómeno científico ou tecnológico passa a fazer parte das nossas vidas. Contudo, há invenções, como a energia nuclear, que nunca deixarão de nos preocupar. A RV parece ter esse destino.

Ademais da visão problemática de Baudrillard e de outros teóricos sobre os simulacros, ou do prisma nebuloso sobre os mesmos que o romance fantástico de 1940 A Invenção de Morel, de Bioy Casares, já cultivava, a literatura cyberpunk de William Gibson e de Neal Stephenson nutriu a desconfiança sobre os mundos de simulacros da era digital, amplificada no cinema pelos blockbusters inspirados na imaginação presciente desses escritores. Tanto na obra mais popular de Gibson, Neuromancer, de 1984, como na de Stephenson, Snow Crash, de 1992, a RV é mais apelativa do que a realidade, que é pintada como um pesadelo futurista.

Actualmente, num século XXI de mutações vertiginosas, muitas delas relacionadas com a digitalização da vida humana, já não estamos tão longe dessas distopias cyberpunk. As democracias têm fraquejado, o manto da pós-verdade vai imperando, surgem variantes de pseudo-eventos que Daniel Boorstin não imaginou, o controlo social tecnológico prolifera em regimes autocráticos, com a China como cabeça desse dragão, e é alarmante o comportamento adictivo de tantos com as máquinas digitais, cujas telas mostram amiúde o vazio existencial das sociedades contemporâneas.

A RV é inescapável como elemento do nosso futuro. O desafio será lidar com ela sabendo quem somos. Conhecendo-nos a nós próprios de forma a não nos perdermos nos seus labirintos mágicos. E o terreno desse autoconhecimento deverá ser a realidade. Dificilmente conhecer-nos-emos melhor no baile veneziano que é a RV. Mas valerá a pena continuar a filmar documentários nela, como se fez em We Met in Virtual Reality, e reflectir novas e complexas expressões humanas. Valerá a pena, como nunca, filmar e ver documentários e outros filmes que se relacionem com a realidade num mundo cada vez mais alheado desta.

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