Conhecemo-nos na realidade virtual? (1)

A mensagem do filme é que a RV ali experienciada não é um mero escapismo, mas algo de fundamental e estruturante na vida dos participantes, e que esse mundo paralelo é mais positivo que o mundo real.

Fechou-se 2022, e pouco ou nada se escreveu sobre We Met in Virtual Reality (Conhecemo-nos na Realidade Virtual), saído a meio desse ano e disponível na HBO Max. Não é um bom filme, longe disso, mas importa ver aquele que é um documentário pioneiro inteiramente rodado dentro de uma realidade virtual (RV). Diz-nos certamente muito sobre o futuro, mas também sobre o mundo em que vivemos hoje, já bastante dominado pelos “deuses” de Silicon Valley, que se preparam, uns com mais sofreguidão que outros, para explorar o admirável mundo novo da RV e de uma utopia transumanista que movimentará muitas contas bancárias.

Mark Zuckerberg continua a apostar tudo no metaverso, que propõe transportar a RV para uma sofisticação nunca antes vista, mas que é para já, antes de tudo, um buraco negro que engole milhões de dólares. Muitos consideram uma aposta suicida. Elon Musk, mais cauteloso neste domínio (e ganhou por certo ponderação com a desastrosa compra do Twitter), acredita na conjugação ainda distante entre RV e a Neuralink, o seu laboratório de neurotecnologia que visa implantar em cérebros humanos chips que permitirão uma imersão na RV. Soa a ficção científica, mas poderá ser o futuro, que definitivamente será pós-humano.

O estranho objecto audiovisual que é We Met in Virtual Reality dá-nos a ver a RV paleolítica do jogo electrónico VRChat, onde “se pode ser” outra “pessoa” (“Podes ser quem sempre quiseste ser”, diz-se no trailer). Escolher um corpo idealizado, mudar de sexo, não ter sexo, ser alguém completamente diferente da realidade. Os avatares dos participantes do jogo espelham uma variedade imaginativa de virtualidades identitárias. Desde quimeras (fisionomias humanas com cauda e orelhas felinas parecem ser as favoritas), cães falantes e outras figuras irreais que remetem para os universos sci-fi e dos comics.

A estética é devedora do animé, com figuras femininas recorrentemente sexualizadas de forma explícita e corpos masculinos titanicamente musculados. Uma imagética que reflecte ideais físicos das pessoas que estão por trás desses avatares, e coincidentemente representações do imaginário da cultura de massa. A estas figurações do corpo junta-se a frivolidade do discurso, reforçando todo um ambiente de reality show. A ressonância da televisão é evidente também em cenas de estilo videoclipe ou na dispensável música dramatizante em passagens mais emocionais.

Num mundo paralelo totalmente virtual, a câmara do filme também o é. Joe Hunting, o realizador, adicionou ao seu avatar, silencioso e nunca visível, a opção de registo de câmara (criada por uma utilizadora, que, como outros da comunidade VRChat, contribui para a evolução do jogo). A filmagem observacional e com talking heads foi garantida com os normais controlos fotográficos de uma câmara (foco, exposição, distância focal, etc.), o que emula de forma curiosa uma câmara real. No entanto, o grafismo, como é normal num jogo electrónico, é pouco orgânico e tem pontuais distorções que ampliam o carácter postiço da imagem, também evidente nos próprios avatares campy e de semblantes inexpressivos. A sensação de artificialismo aumenta assim nos momentos de maior pathos, atingindo o zénite nos planos em que se chora e não se vêem lágrimas.

We Met in Virtual Reality é um documentário feito com avatares (isto é, personagens), sendo, por isso, forçosamente uma obra ficcional. O seu enredo é desenvolvido mais por aqueles do que pelo realizador, que nunca deixa de ser um documentarista de uma ficção, que ainda assim ausculta as vidas daqueles que movimentam os títeres do VRChat. E esse traço antropológico é o mais interessante do filme: percebermos um pouco quem são as pessoas que participam neste jogo, e quais as suas motivações para fazerem parte de uma RV. As conclusões, contudo, são inquietantes. Em grande medida a mensagem do filme, que tem uma dedicatória final à comunidade do jogo, é que a RV ali experienciada não é um mero escapismo, mas algo fundamental e estruturante na vida dos seus participantes, e que esse mundo paralelo é mais positivo que o mundo real.

Ouvimos jogadores do VRChat sublinhar a importância da plataforma durante as quarentenas do coronavírus (na RV não existe a agrura da contaminação com covid-19 ou outras doenças transmissíveis social ou sexualmente). Mas os elogios vão muito além dessa circunstância. Diz-se, por exemplo, que as amizades ali feitas chegam a salvar vidas reais (o suicídio implícita ou explicitamente é mais do que uma vez abordado). Numa passagem, a figura de uma jovem mulher expõe a vantagem dos outros participantes do jogo não saberem aspectos da sua vida concreta, e como o VRChat a salvou do alcoolismo. Fala-se também de um apaziguamento que a RV, onde não há as expectativas da sociedade real, transmite aos seus frequentadores. E, acima de tudo, fala-se muito de amor nas relações de amizade e nos vínculos românticos da comunidade virtual, que se desejam prolongar à realidade, mesmo quando os envolvidos vivem separados por milhares de quilómetros.

O filme conclui-se com a protagonista principal (uma professora de linguagem gestual com um contributo que parece bastante edificante para utilizadores surdos do VRChat) afirmando platonicamente que o facto de duas pessoas que se amam na RV não sentirem o toque uma da outra só potencia o apreço que têm pela “cousa amada”, apaixonando-se puramente pela sua personalidade. Referindo candidamente que, “quando estás na RV, vês uma pessoa simplesmente como ela é”. Reforçando, de seguida, a visão idílica de que aquele lugar que não existe fisicamente é um espaço para as pessoas serem mais “abertas e fiéis a si mesmas”.

We Met in Virtual Reality incorre numa perspectiva assaz leviana e distorcida perante a intrincada dimensão do ciberespaço que retrata. Só a expressão “ver uma pessoa”, aludida acima, é todo um problema. O que é visto é um avatar, modelado pela pessoa que o comanda, cuja própria voz pode ser alterada. Permitindo, por exemplo, a menores de idade passarem por adultos.

Sobre esta hiper-realidade opaca com vastas possibilidades de (re)criação disponíveis, em que narcisicamente se é Pigmaleão de si mesmo, levanta-se então a seguinte pergunta: como podemos conhecer quem está do outro lado?

(Continua)

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