Sabia que a roupa nova que devolve à loja pode acabar num aterro?

Um terço das compras online que são devolvidas vai parar ao lixo. Nos EUA, toneladas de roupa acabam em aterros por ser mais rentável do que as reinserir no circuito. Em Portugal não será diferente.

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Enviar os produtos para aterros ou para incineração é uma forma de evitar perdas financeiras Sam Lion/Pexels

Acontece a qualquer um: encomenda um vestido para o Ano Novo ou recebe aquele casaco de sonho como prenda de Natal. Abre a caixa, experimenta e, numa infeliz instância, a peça não serve. A solução? Uma ida rápida à loja para trocar ou devolver a roupa que não usou acreditando, certamente, que terá uma nova casa e uma vida feliz, com outro qualquer consumidor mais satisfeito. Ou não. A verdade é que há fortes probabilidades desta peça nova ir parar directamente a um aterro.

Reinserir um objecto devolvido no circuito de distribuição não é, muitas vezes, a primeira opção das grandes empresas de fast fashion. Salomé Areias, fundadora do movimento Fashion Revolution em Portugal, revela que, um terço das compras online devolvidas globalmente é deitado fora pelas lojas. Um relatório da Optoro, empresa especializada em retornos, mostra que, só nos Estados Unidos, cerca de quatro mil milhões de quilos de roupa devolvida às marcas foram parar a aterros em 2021.

Para qualquer vendedor, a devolução de uma compra representa uma perda financeira. E, quando o fabrico é feito por uma empresa externa e se torna muito barato – o que permite a venda a preços mais amigos da carteira do que os de uma marca que não produza em massa –, receber uma peça de roupa de volta e iniciar um processo de transporte e processamento para a vender novamente fica mais caro do que a produzir.

Naquele que é, segundo a associação Zero, o quarto sector com maior impacto ambiental, fazer o produto desaparecer numa incineração (gerando gases tóxicos e poluentes) ou num aterro (onde os químicos usados nas fibras podem poluir o solo ou a água) é o método mais simples para evitar uma segunda perda financeira. O processo repete-se com o overstock, isto é, os 30% a 40% de produtos em armazém que não chegam sequer a ser vendidos.

As empresas nacionais não são excepção: apesar de não existirem dados estatísticos no país, a coordenadora do movimento Fashion Revolution relembra que, para uma marca portuguesa de fast fashion, “o modelo de negócio é exactamente igual”, pelo que o mesmo fenómeno corre o risco de acontecer.

Um problema para as marcas

O procedimento de destruir roupa já existe desde o nascimento dos modelos de produção de moda rápida, nos anos 90. Na altura, a medida era adoptada porque não se queria “que as marcas perdessem prestígio nem que a roupa fosse parar ao mercado paralelo”. Era uma forma de a manter sempre “apetecível e nova”, explica Salomé Areias.

Ao passo que o descarte da roupa era feito “um bocado na obscuridade, porque não era conhecido da população em geral”, hoje, as empresas estão sob pressão. “Com a pressão da União Europeia [como as progressivas restrições no âmbito do Plano de Acção para a Economia Circular] e todas as pressões que têm surgido para as marcas não poderem destruir o seu overstock, isto torna-se um problema para elas”, afirma a activista, formada em Design de Moda e Sociologia.

São várias as marcas que já foram vítimas de acusações. Em Junho de 2021, a Amazon foi acusada de destruir milhares de produtos todas as semanas. Três anos antes, a marca de roupa de luxo Burberry anunciara que ia deixar de queimar roupa não vendida. Outro exemplo é a sueca H&M que, entre 2013 e 2017, queimou pelo menos 60 toneladas de roupa, de acordo com uma investigação. Mais recentemente, a associação Zero analisou as lojas online de 35 grandes marcas de roupa e concluiu que apenas seis assumem responsabilidade parcial pelos resíduos que geram.

“Quando levam com esta retaliação do mundo por queimarem as coisas, elas [as empresas] não querem que as pessoas devolvam. Há marcas que estão a tomar medidas para evitar que as pessoas devolvam as coisas, mas é uma questão de logística”, observa a coordenadora nacional do Fashion Revolution.

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A cultura das compras online leva a mais devoluções, intensificando o problema Antoni Shkraba/Pexels

A pandemia das compras online

Com a pandemia de Covid-19, a adaptação a uma nova realidade transferiu muitas rotinas do dia-a-dia para o online, entre as quais, as compras. Apesar dos sucessivos confinamentos um pouco por todo o globo, o lucro das lojas de roupa “não desceu quase nada”, nota Salomé Areias. A cultura mantém-se, apesar de a nossa vida já não estar circunscrita a quatro paredes. Segundo um relatório do Marktest, 60,9% dos residentes em Portugal Continental fez compras online em 2022.

O produto favorito? Roupa e calçado, concluiu um inquérito da ANACOM relativo a 2021, onde 69% dos que responderam disseram ter encomendado vestuário pela internet nos três meses anteriores ao questionário.

No caso do artigo de moda, quem compra tem necessidade de experimentar, algo que não é satisfeito através de um ecrã. Nesse sentido, a coordenadora do Fashion Revolution tem observado uma adaptação por parte dos consumidores ao digital, que passa por “comprar dois e três tamanhos e depois devolver os que não servem” – um processo que foi facilitado por muitas lojas que tornaram as devoluções gratuitas em tempos de Covid-19.

“A grande percentagem das devoluções não é por defeito. É mesmo porque a compra online de roupa envolve, em vez de fazer uma compra, fazer duas ou três”, remata.

Uma outra característica da compra no digital é o facto de esta estar “positivamente ligada à compra por impulso”, que acaba, muitas vezes, numa devolução. Resumidamente, a aquisição de uma peça de roupa cria dopamina a partir do momento em que o consumidor, confrontado com um artigo que aprecie, começa a imaginar uma realidade em que o tem.

“O teu momento de maior dopamina não é quando pegas no vestido que compraste; é quando imaginas que o podes ter”, afiança Salomé Areias. É uma espécie de antecipação do prazer que, no digital, com toda a oferta no mesmo ecrã, está constantemente a ser estimulada.

“Compra por impulso associada a compras de duas ou três unidades para cada artigo torna o problema ainda maior”, opina.

A culpa não é de quem compra

Após uma doação de 25 mil peças de roupa, a marca Salsa descobriu que os artigos estavam a ser ilegalmente comercializados. A certa altura, a doação confiscada ia ser destruída. Entretanto, a roupa encontrou uma nova casa na Cruz Vermelha, mas Salomé Areias recorda este caso como um exemplo claro da opinião pública, que se indigna por “estar muita gente a precisar de roupa”. Um mito, na sua opinião.

“O choque por detrás da destruição de toneladas de roupa é porque há povos que precisam de roupa e andamos a destruir em vez de doar. Mas o problema vem antes disso: a produção é muito maior do que aquilo que as pessoas precisam no mundo inteiro”, afirma.

Doar roupa usada e garantir que toda ela chega a ter uma nova vida “é muito difícil”, visto que também essa roupa vai “parar a aterro ou estrangular outro mercado qualquer algures – ou nenhures – no outro lado do planeta”, remata a activista. Nas associações, não há uma falta geral de roupa e as necessidades são, normalmente, muito específicas: “roupa de frio, roupa interior nova ou roupa de criança”. Não existem dados conhecidos sobre o que é feito às devoluções em Portugal, mas, segundo o portal de notícias do Parlamento Europeu, 87% da roupa usada na Europa é queimada ou deixada em aterros.

Salomé Areias realça que "este problema dos retornos e da roupa ir para aterro deve-se a duas grandes razões que têm a ver com as marcas e não com o consumidor”. A “gigante” quantidade produzida e não vendida, bem como os preços baixos de produção, que fazem com que não compense voltar a circular um produto devolvido, são, na visão da mentora do Fashion Revolution Portugal, os motivos de tanta roupa acabar destruída.

Enquanto consumidores, comprar mais na loja e evitar o retorno, vendendo em segunda mão ou dando as peças que não servem a um conhecido, são formas de ter um impacto positivo, mas “há pouca coisa que podemos fazer”, admite. Contudo, Salomé Areias realça que o consumidor é, mais do que alguém que compra, um cidadão com capacidade de se mobilizar, falar sobre o assunto, espalhar informação, questionar as marcas e pedir legislação mais rigorosa.

O mais importante? “Ter reflexão crítica e não sentir culpa”, responde a activista, que é contra a narrativa de responsabilização do consumidor. Culpar alguém – que pode ou não ter o “privilégio de fazer escolhas mais sustentáveis – por aquilo que compra é uma cultura nociva, no sentido em que acaba por “paralisar, restringir e limitar”.

“De forma ilusória, faz-se o consumidor pensar que o seu poder está limitado ao seu consumo – mas não. Ele tem de falar sobre estas coisas”, conclui Salomé Areias.