Um grande vinho feito de Tinta Miúda que quase nos passava ao lado

Se tivéssemos que eleger um vinho expecional, de uma casta quase desparecida e provado nas últimas semanas, seria este Tinta Miúda da Herdade Grande, no Alentejo.

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António Lança e a filha Mariana querem mostrar a plasticidade do terroir da Vidigueira com este Tinta Miúda da Herdade Grande João Nogueira

Os produtores apresentam os seus vinhos ao longo do ano, mas entre o final de Outubro e início de Dezembro carregam no acelerador com eventos de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite, convencidos de que as contas serão salvas entre o Natal e o Ano Novo (e se calhar são). Em consequência, os jornalistas desenvolvem um sistema de filtros em que a prioridade é aceitar as provas que, em tese, darão boas histórias. Mas se por cada dia de provas um jornalista tiver que, num cenário bem conservador, provar dez garrafas, estará ele a dar a devida atenção a todos esses vinhos? Não nos parece. Todavia, os produtores não se interessam com estas minudências. Eles querem é o maior número possível de jornalistas, de bloggers ou escanções nos seus eventos. O resto é conversa. Sim, os jornalistas reclamam. E sim, os produtores prometem mudar, mas, para o ano, tão certo como o Natal ser a 25 de Dezembro, tudo se repetirá.

Ora, se a este cenário juntarmos os vinhos que são enviados para as redacções, é fácil concluir que uma quantidade considerável de vinhos fica, infelizmente, fora do radar da prova. Não é que o jornalista falte ao respeito a quem quer que seja. Ele pura e simplesmente tem limites físicos para provar e avaliar vinhos de gente que trabalha com seriedade. É só isso. Mas, claro, por vezes as surpresas acontecem.

Com a relativa acalmia que a véspera da festa nos dá, tiraram-se de umas caixas que estavam num corredor três tintos de regiões diferentes. Nenhum desiludiu, mas o Herdade Grande Tinta Miúda 2020 deixou-nos em silêncio e com aquela sensação de que já deveríamos ter dado há mais tempo toda a atenção a esta nova referência.

Num trabalho publicado no Verão, explicámos no Terroir que a Tinta Miúda era uma casta usada como acidificador natural dos tintos em regiões quentes. Em Espanha chama-se Graciano e é usada para temperar os Rioja, à base de Tempranillo (ou Aragonez no Alentejo). Acontece que, como muitas outras castas de classe, só se porta bem quando o tempo corre de feição, pelo que os produtores das regiões de Lisboa, do Alentejo ou do Tejo substituíram-na por castas mais certinhas (nacionais ou internacionais). Que tenhamos conhecimento, produtores que apresentam vinhos varietais de Tinta Miúda são a Quinta do Pinto, a Herdade da Malhadinha Nova, o Monte Bluna, a Herdade da Torre de Palma e a Quinta da Alorna. A partir de agora, também a Herdade Grande, da Vidigueira.

Isso acontece porque António Lança, o agrónomo com grande conhecimento da história dos vinhos alentejanos, gosta de assumir desafios, sejam eles criados com castas regionais, nacionais ou internacionais (não é um fundamentalista). A vinha de Tinta Miúda que dá origem a esta nova marca da Herdade Grande até é bem nova (uns sete anos), mas António, a filha Mariana (gestora) e o enólogo Diogo Lopes já andavam de olho no resultado de vinificações anteriores. E, este ano, decidiram engarrafar a colheita de 2020 porque isso cauciona uma tese que têm defendido nos últimos anos: mostrar a plasticidade do terroir da Vidigueira.

A Herdade Grande fica na Vidigueira, no Alentejo. João Nogueira
Instalações da Herdade Grande, na Vidigueira, Alentejo. João Nogueira
Da esquerda para a direita, o enólogo da Herdade Grande, Diogo Lopes, o proprietário e agrónomo António Lança e a filha deste, filha Mariana (gestora) João Nogueira
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A Herdade Grande fica na Vidigueira, no Alentejo. João Nogueira

Parece-nos uma boa decisão. Primeiro porque o tinto é cativante desde o momento em que levamos o copo ao nariz; segundo porque é algo diferente no portfólio da empresa; terceiro, porque é um tinto que cai bem num novo perfil de vinhos que ganha cada vez mais adeptos e, quarto, porque chama a atenção dos consumidores para uma casta portuguesa (ibérica, vá), muito pouco conhecida entre nós. Ainda se verá gente a regressar à Tinta Miúda.

Por comparação com outros Tinta Miúda, este vinho distingue-se sobremaneira na prova de boca. É certo que tem uma matriz que nos leva para notas vegetais ou fumadas da casta (recorda-nos a Trincadeira ou o Castelão), mas, na boca, está entre um grande tinto do Dão ou um clássico Pinot Noir. Aveludado, sedoso e sedutor, mas com acidez presente, é um tinto versátil à mesa, em particular na ligação com carnes de aves recheadas. Não, não. Não estamos a pensar nessa coisa desenxabida chamada peru (era o que faltava). Estamos a pensar num capão recheado. E se for um capão recheado por Teresa Ruão (Cozinha da Terra), isso será um momento histórico. Por causa do vinho, do capão e do ambiente excepcional que a Teresa cria no seu restaurante em Paredes.

Nome Herdade Grande Tinta Miúda 2020

Produtor Herdade Grande

Castas Tinta Miúda

Região Alentejo

Grau alcoólico 14,6 por cento

Preço (euros) 23

Pontuação 95

Autor Edgardo Pacheco

Notas de prova Tinto delicado, destaca-se pelos aromas de frutos vermelhos (ginja) e notas ligeiramente vegetais e fumadas, com algumas especiarias à mistura. Na boca, o tal carácter vegetal e até terroso tem um perfil marcadamente aveludado e guloso. Agora, a surpresa. Se, às cegas, algo nos faria pensar que o vinho tivesse tido contacto com barro, descobre-se que, afinal, foi estagiado em barricas novas de carvalho de 300 litros. O que nos leva a pensar que é possível usar-se barricas novas sem que o vinho se transforme numa infusão de carvalho. Mas nem todos sabem ou querem fazer isso.

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