Barcos contra a corrente

Já é tempo de mostrarmos a verdade às nossas crianças, explicar o real significado do Natal.

Vivi o primeiro Natal de que tenho memória no Alentejo. Foi inesquecível para mim e, com certeza, também para o Toino.

O Toino era colega de escola e amigo de um dos meus irmãos. Todos os dias chegava a nossa casa sorridente para uma tarde de deveres, como dizíamos nesse tempo, e brincadeira. Por vezes vinha descalço, o que era tristemente comum naquele tempo, num país em plena ditadura.

É assim que me lembro dele: a sorrir e descalço.

O Toino tinha seis irmãos e o pai trabalhava numa fábrica onde era expectavelmente explorado.

Com a aproximação do Natal, o Toino chegou a nossa casa eufórico: havia uma árvore enorme na fábrica, com uma série de presentes para sortear, entre eles uma bicicleta!

Nos seus sete anos, o rapazinho tinha vivido os seus Natais sem alguma vez ter recebido um presente. Era assim... “o Menino Jesus esquecia-se” dele e dos irmãos.

Mas naquele ano podia ser diferente: havia o sorteio na fábrica do pai... quem sabe?

E o Toino sonhou...

Quando, uns dias mais tarde, chegou a nossa casa vindo da festa, cabisbaixo, a minha mãe, que previra a profunda desilusão, perguntou a quem tinha saído a bicicleta.

Afinal era para o filho do Sr. Engenheiro Lima, murmurou o Toino.

– E os outros presentes? – quis saber a minha mãe.

– ​Também eram para os filhos de outros senhores da direção. Mas não faz mal, houve palhaços e eu gostei...

Era o Alentejo insensível, cruel, no seu pior, pensou revoltada a minha mãe, originária do Norte e para quem o Alentejo, naquele tempo, ilustrava o expoente máximo da desigualdade e exploração que marcavam todo o país.

E o Toino foi convidado a passar o Natal connosco.

Na noite de consoada, chegou, sorridente e endomingado, os olhos brilhantes saltitando de travessa em travessa com a doçaria tradicional. Quando chegou o momento de pormos o sapatinho no sótão, o Toino, de repente cabisbaixo, disse não valer a pena, o Menino Jesus não ia lembrar-se dele. Os meus pais insistiram: todos os sapatos tinham um cartão com o nome do dono, para não haver esquecimentos. Levaram com eles, juntamente com os nossos, o velho sapato do Toino, herdado de dois irmãos.

Quando, passado algum tempo, a minha mãe nos disse ter sentido que o Menino tinha chegado, subimos as escadas entusiasmados, enquanto o Toino nos seguia devagar. Afinal, em toda a sua curta vida, tinha sido espectador das alegrias dos outros, dos que usavam sempre sapatos, tinham pais importantes e recebiam prendas no Natal. Carregava já, aos sete anos, um conformismo ancestral, que o fazia baixar a cabeça e aceitar.

Quando viu, junto aos nossos, o seu sapato, o Toino não queria acreditar: tinha presentes de Natal! Foi ler o cartão para se certificar e lá estava: Toino!

Não conseguia parar de repetir aos berros:

– ​Toino! Toino! Toino!

– O Menino Jesus não se esqueceu de mim! –​ conseguiu por fim dizer.

Os presentes do Toino eram exatamente iguais aos do meu irmão.

Eu tinha somente quatro anos, mas a euforia do Toino ao ler o seu nome no cartão ficou-me gravada na memória. Haverá detalhes dessa noite que ouvi contar e interiorizei, como se de recordações minhas se tratassem, mas as exclamações de alegria do Toino são memórias vivas, realmente minhas, que recriam o meu primeiro Natal.

Como é que o Toino veria aquele Menino Jesus elitista, materialista, que nós criámos, distribuidor de presentes aos privilegiados e se “esquecia” dos que nada tinham?

E o tempo passou. Os anos sucederam-se a uma velocidade estonteante. Tudo mudou. Festejou-se a mudança, o direito à indignação, o fim do conformismo.

Aquele Menino Jesus, que quisemos indiferente à mágoa dos Toinos deste mundo, foi em grande parte substituído pelo velhote vestido de vermelho, de uma bonomia risonha, amigo de todas as crianças. Será? Não continua esta figura a cavar desigualdades no mundo infantil, indiferente a tantas cartas, cheias de ilusões, escritas em casa e nas escolas, assinadas pelos inúmeros Toinos, que ignora, à semelhança daquele outro Menino Jesus?

Já é tempo de mostrarmos a verdade às nossas crianças, explicar o real significado do Natal: a celebração do nascimento de Jesus, embora, para alguns, somente a festa da família. Deixar também clara a origem dos presentes, que dependem das possibilidades económicas dos pais. Daí as diferenças entre as crianças, que não são sancionadas nem acentuadas pelo Menino Jesus nem pelo Pai Natal.

Haverá hoje em dia, no nosso país, um menor número de Toinos, mas a toda a hora surgem mais, apesar dos enormes esforços de tantos.

E recordo-me de uma citação de Scott Fitzgerald: “So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past”.

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