Matos Gomes: “Massacre de Wiriyamu vem do acumular de tensões no sistema”

Os militares perceberam que seriam sempre o bode expiatório da política colonial do regime.

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Matos Gomes refere uma situação nova em Moçambique

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Os anos 70 do século passado foram marcados em Moçambique por uma situação militar peculiar e objectivos diversos dos vários protagonistas em cena. “O massacre de Wiriyamu é consequência do acumular de tensões na base do sistema”, afirma, ao PÚBLICO, o coronel reformado Carlos Matos Gomes.

“O problema colonial defrontou-se com uma situação nova que não tinha ocorrido em Angola e na Guiné”, refere o militar co-autor com Aniceto Afonso de Guerra Colonial. E, com o pseudónimo literário de Carlos Vale Franco, autor do romance Nó Górdio, em referência à operação militar concebida pelo comandante-chefe de Moçambique, general Kaúlza de Arriaga.

Esta operação de guerra clássica em território de guerrilha envolveu mais de oito mil homens, cerca de 40% das tropas portuguesas em Moçambique, concentradas em Mueda, no Norte, e durou de Julho a Agosto de 1970. “A Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] aproveitou aquela concentração para transferir as suas forças para Tete, o que foi permitido pela Tanzânia e pela Zâmbia. O objectivo da Frelimo era passar da esquerda do Zambeze para a direita do rio”, explica Matos Gomes.

“Conjugaram-se factores de conflito complexos, de grupos locais com ligações a Portugal, outros mais ligados à Frelimo, há um interesse económico muito sério conduzido pelo engenheiro Jorge Jardim com a sua perspectiva da questão colonial e ligações a missionários e jornalistas estrangeiros. E os interesses particulares da PIDE [a polícia política do regime então rebaptizada Direcção-Geral de Segurança]”, enumera.

Há, também, as referências estratégicas de Kaúlza, que, como todos os generais, gozava de uma grande autonomia, assentes em acções militares de grande envergadura. Ao desguarnecer outras posições, gera uma má relação com os governadores-gerais e os colonos. E, ainda, o interesse de Portugal na barragem de Cahora Bassa, cuja construção arrancara em finais de 1969. Ao destruir aldeias tradicionais, a obra provocou mal-estar na população favorecendo o apoio à guerrilha, com o recrutamento de jovens.

“A PIDE queria aldeamentos pequenos, as Forças Armadas queriam aldeamentos de grandes dimensões para serem mais facilmente controláveis e não dar abertura às soluções negociadas preconizadas por Jorge Jardim”, prossegue. As disparidades de objectivos podem ter contribuído para fenómenos de grande violência, como o do massacre, admite o militar.

“A causa próxima de Wiriyamu é a informação da PIDE de que se vão concentrar 600 guerrilheiros. A força de comandos portugueses de 120 homens transportados em helicópteros vai preparada para assaltar uma base [da Frelimo] de grande envergadura”, assinala. Na Operação Marosca, como foi baptizada aquela acção em 16 de Dezembro de 1972, são mortos pela tropa 385 civis.

“Em termos morais, todos repudiamos massacres, todas as guerras têm massacres, mas a questão não é de lavagem histórica”, acentua Matos Gomes.

“No Verão de 1973, Marcelo Caetano demite Kaúlza de Arriaga, o único general que foi demitido. Na sequência de Wiriyamu, também o brigadeiro Videira [à frente do Comando Operacional das Forças de Intervenção] é demitido e mandado regressar a Portugal, e a Jaime Neves é retirado o comando”, recorda.

“Isto ajuda a perceber a contestação dos militares portugueses à política do regime, os militares perceberam que seriam sempre o bode expiatório”, conclui.

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