O Ocidente não está de volta

A ordem e a segurança mundiais não se podem reduzir à consolidação formal de blocos antagónicos.

O Ocidente não está de volta porque permanece onde sempre esteve. O professor Nuno Severiano Teixeira escreveu, a 14 de dezembro, neste jornal que, “se as tendências internacionais se confirmarem”, a Ucrânia será a “fronteira entre a comunidade euro-atlântica e a comunidade euro-asiática” e também “entre a democracia e a autocracia”. Por mais que o espaço transatlântico, em especial a NATO, se tenha mantido coeso face à invasão russa do território soberano da Ucrânia, uma paz vindoura não pode tomar como ponto de partida a coexistência formal e explícita entre dois blocos geopolíticos – o Ocidente e o resto – rivais, armados e aptos a competir por influência global.

A ordem e a segurança mundiais não se podem reduzir à consolidação formal de blocos antagónicos. Se a invasão e a consequente guerra provocada pela Rússia requer um espaço transatlântico unido a favor da libertação da Ucrânia, a viabilidade de uma paz futura exige que a Rússia não esteja permanentemente ostracizada. Da mesma maneira que, na sequência da II Guerra Mundial, se integrou a República Federal da Alemanha dentro da arquitetura de segurança europeia, também qualquer ordem de segurança internacional futura requer um mecanismo formal e político de reintegração da Rússia, como também um novo tratado de equilíbrio e desarmamento estratégico nuclear entre todas a grandes potências, a China inclusive. No dia em que a guerra cessar, a Rússia continuará a fazer parte do continente europeu.

A consolidação de espaços geopolíticos mutuamente exclusivos deve ser evitada, principalmente por três razões.

Primeira, a competição geopolítica concorre e já contribuiu não apenas para um desperdício de recursos numa busca incessante de mais e melhores armas, mas também para o deflagrar de conflitos armados – as chamadas “proxy wars” – no mundo. Forçar outros Estados fora desses blocos a tomar partido de um lado ou de outro numa disputa global apenas originará modos – quer explícitos, quer solapados – de intervencionismo por parte de grandes potências. E, se isso não bastasse, a rivalidade possivelmente crescente geoestratégica entre dois grandes blocos torna o espetro de uma guerra global cada vez mais próximo do que longínquo.

Segunda, tal como referido pelo professor Severiano Teixeira, muitos dos principais acordos do pós-Guerra Fria estão caducos, em particular os princípios da “inviolabilidade das fronteiras” e da carta da Helsínquia, entre outros. Contudo, alguns desses tratados extinguiram-se muito antes do começo do conflito armado. A saída unilateral do Tratado de Mísseis Antibalístico (mais conhecido como ABM), no final de 2001, foi uma decisão norte-americana, tomada, aliás, à revelia da maioria dos seus aliados. Foram também os EUA que decidiram finalizar o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF) e o Tratado “Open Skies”. Quanto à inviolabilidade de fronteiras, esta fora logo posta em causa, em 1999, aquando do bombardeamento do Kosovo por parte da NATO. O passado recente não serve, neste sentido, de exemplo, nem muito menos legitima o “Ocidente”.

Terceira, uma disputa global geopolítica legitima o extremismo político. Aceitar que a guerra na Ucrânia e que um potencial acordo de paz futuro se traduzam na consolidação de blocos antagónicos baseados em preceitos civilizacionais – em conceitos como o “Ocidente” – oferece uma plataforma para que versões de nacionalismo atávico adquiram preponderância política na Europa e para que se consolidem ainda mais na Rússia. Por todas estas razões, maniqueísmo geoestratégico representa uma falsa oportunidade para a Europa e para a política internacional como um todo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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