“Um carro alagado é como um computador debaixo de água”

Várias vias foram cortadas na cidade de Lisboa durante a noite e a manhã de terça-feira. Mas, ainda assim, os automóveis não escaparam às águas. Agora, é tempo de fazer contas aos danos.

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Se a água chegar a meio da porta há uma “grande probabilidade de o motor a aspirar o que irá provocar danos muito grandes” LUSA/JOÃO RELVAS

“Tudo o que é automóvel dos últimos 15 anos depende da electrónica”, destaca o engenheiro mecânico Mário Abreu ao PÚBLICO, lembrando que “um simples interruptor de porta já não é igual à campainha lá de casa; é um pequeno computador. Hoje, cada carro tem entre 50 e 100 pequenos computadores destes [os famosos microchips, cuja escassez tem feito manchetes quando se fala da indústria automóvel] que, dentro de água, vão sofrer”. E resume numa imagem: “Um carro alagado é como um computador debaixo de água”.

Entre o final da noite de segunda-feira e a hora de publicação deste artigo foram muitos os automóveis atingidos pela intensa chuva que caiu sobre a Grande Lisboa. E não é só a parte electrónica com que os proprietários têm de se preocupar. Mecânica e interiores também podem ter sido comprometidos.

Mário Abreu, que há mais de dez anos se dedica ao restauro de clássicos, faz a distinção entre um carro que ficou com água próximo do meio da porta e outro que viu o nível da água a ultrapassar essa linha imaginária. Embora varie de modelo para modelo, será nessa fronteira que aproximadamente se localiza o filtro do ar. E, se a água chegar ao filtro, há uma “grande probabilidade de o motor a aspirar, resultando em enormes danos”.

Por isso, embora o senso comum diga para acelerar suavemente para sair da água, o especialista aconselha, antes disso, a observar o nível das águas. Se estiver perto do meio da porta, a recomendação é para desligar o carro e abandonar a viatura onde está. Mas, ressalva, é preciso estar atento à possibilidade de se ser arrastado na corrente ao sair do automóvel. “Cada caso é diferente; pode ser mais seguro ficar dentro do carro”, avisa.

Resolvida a inundação, o que é proibido fazer é ligar o carro. “A grande probabilidade é para que a água tenha invadido a mecânica e se misturado com os vários fluidos. O que vai acontecer é que o motor vai trabalhar a água ou a óleo contaminado por água, promovendo o desgaste das peças.”

A primeira coisa a fazer será chamar o reboque e enviar o carro para uma oficina, de preferência que tenha serviço de limpeza de estofos. “Tudo o que absorveu água tem de ser seco, como os estofos, os revestimentos, os tapetes, o chão”, enumera, apontando para a importância deste passo, já que a humidade irá apodrecer as espumas das estruturas dos bancos, originando “a criação de bolores e fungos”, prejudiciais à saúde.

Ao nível da mecânica, se o carro não tiver aspirado água, os trabalhos passarão pela substituição de todos os óleos (do motor, dos travões) e filtros, mas também pela drenagem e limpeza do depósito de combustível. No caso de um carro eléctrico, as baterias deverão ser suficientemente estanques para evitarem a entrada de água, mas será necessário proceder a uma verificação.

Seguros nem sempre resolvem

Os custos, avalia Mário Abreu, dependerão muito do modelo, mas dificilmente se situarão abaixo dos mil euros, uma despesa que pode ser imputada à companhia de seguros caso a apólice ofereça protecção contra fenómenos da natureza, em que se inclui chuvadas fortes e consequentes inundações e aluimentos de terra ou quedas de muros e árvores.

No entanto, lembra Diogo Martins, da Deco – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor,​ a cobertura de fenómenos da natureza é, em Portugal, um opcional que encarece o prémio a pagar e, na maioria das vezes, não é subscrito, sendo mais comum, sobretudo em viaturas com mais antigas, restringir a protecção automóvel ao obrigatório seguro de responsabilidade civil.

E nem para quem tenha subscrito uma modalidade que inclui fenómenos da natureza a protecção é garantida. É que, para que a companhia pague os danos, ressalva Diogo Martins ao PÚBLICO, é necessário provar que não resultaram de negligência. Ou seja, se ficou parado no meio de uma estrada alagada, precisará de provar que a via não se encontrava encerrada e que não era possível ter conhecimento do seu estado e prevenir o problema.

No caso de o automóvel ser atingido pelo aluimento de terras ou derrocadas de muros na sequência da chuva, é relevante observar se se encontrava bem estacionado. Se o carro se encontrava numa garagem que inunde poder-se-á accionar o seguro da estrutura.

No entanto, lamenta Diogo Martins, também aqui dependerá da apólice contratada, já que muitas vezes opta-se pelos seguros menos abrangentes. Ou seja, se o carro não tiver um seguro de danos próprios com o opcional fenómenos da natureza e o edifício não for coberto por um seguro multirriscos, com o extra de danos provocados por desastres naturais, tempestades e inundações, o proprietário do automóvel poderá ficar sem ter a quem recorrer.

“Há muito, que na Deco chamamos à atenção para a necessidade de criar um fundo de catástrofe a nível nacional, gerido pelo Estado, que possa ser accionado em casos excepcionais como este”, remata.

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