Vida selvagem e clima, uma ligação esquecida

Por exemplo, ao alimentarem-se de carcaças de animais, os abutres impedem a emissão gases pelo processo de decomposição, evitando a emissão de grandes quantidades de metano.

Foto
Casey Allen/Unsplash

Alterações climáticas e perda de biodiversidade são dois dos maiores desafios ambientais do nosso tempo. Mas qual é a ligação entre animais selvagens e o clima? Que ligações existem entre carbono e vida selvagem? Como pode o restauro de populações de animais selvagens influenciar a atmosfera?

O planeta respira carbono de mil e uma maneiras. Apesar de ser algo comum dizer que, por exemplo, florestas tropicais regulam o carbono na atmosfera para outros habitats e ecossistemas, as ligações entre ambos nem sempre são claras, detalhadas ou aprofundadas.

Uma viagem até África, até às famosas migrações de gnus nas planícies do Serengueti. Nos anos 60, por causa de doenças e caça furtiva as abundantes populações de gnus estavam em risco de desaparecer: passaram de 1,2 milhões para apenas 300 mil animais, as ervas que antes eram comidas pelos gnus passaram a ser combustível para fogos que a cada ano lavravam 80% da savana, o ecossistema passou de um carbon sink (absorver carbono) para um carbon source (fonte de carbono).

Mas através do controlo das doenças e da caça, as populações de gnus pouco a pouco recuperaram, o carbono absorvido pelas plantas é agora transformado em excremento pelos gnus e depois é armazenado no solo; como há menos combustível, os incêndios são menos frequentes e as planícies do Serengueti voltaram a armazenar grandes quantidades de carbono anualmente - o equivalente às emissões anuais de gases de efeito de estufa da Tanzânia e do Quénia. Gnu, o esquecido herói climático.

Nos oceanos o papel das baleias é fundamental. No passado existiam milhões de animais de várias espécies, mas ao longo do século XX, até a caça comercial de baleias ser banida em 1986, as populações de baleias foram reduzidas a uma pequena sombra do passado. São várias as maneiras com que baleias armazenam carbono: primeiro no corpo, quando morrem e se afundam no oceano, o carbono fica armazenado nas profundezas do mar, mas se forem caçadas ou derem à costa, o carbono acumulado no corpo é libertado para a atmosfera; segundo, através dos excrementos, as fezes das baleias são alimento para fitoplâncton, organismos microscópicos que armazenam grandes quantidades de carbono. Restaurar as populações de baleias à escala global pode ter impactos surpreendentes. Baleias, esquecidas heroínas climáticas.

Nas florestas mediterrâneas, os herbívoros de grande e médio porte são uma peça chave para regular a recorrência e impacto dos incêndios. Numa paisagem não pastoreada, existe muito combustível na forma de zonas densas contínuas de matos, árvores e arbustos altamente inflamáveis. Em caso de incêndio todo o carbono acumulado ao longo de anos é libertado. Mas se a paisagem for pastoreada, a quantidade de combustível for menor e a estrutura da vegetação passar de contínua para uma estrutura de mosaicos, em caso de incêndio, a intensidade do fogo tende a ser menor e muito do carbono armazenado no solo e em zonas de vegetação isoladas tende a manter-se na paisagem.

Ou ainda o resultado da pastagem por cervídeos. Veados e gamos moldam o habitat, as árvores em zonas não pastoreadas são densas, têm ramos desde a base do tronco até à copa. A pastagem por veados e gamos cria copas de árvores bem definidas em altura e quando ocorrem os incêndios tendem a ser apenas rasteiras, com um impacto reduzido tanto no stock de carbono e positivo para a biodiversidade por renovar pastagens. Grandes e médios herbívoros, esquecidos jardineiros climáticos.

Mas há outros exemplos onde a perda de biodiversidade (variedade de tipos de animais) e a bioabundância (o número relativo de animais num determinado espaço) influencia o climam.

Os abutres, apesar de serem associados a lugares como África ou Índia, são nativos da Europa e de Portugal e no passado existiam em grandes números. Os abutres são animais necrófagos, alimentam-se de animais mortos. As carcaças de animais ao decomporem-se libertam grandes quantidades de metano, um potente gás de efeito de estufa. Ao alimentarem-se de carcaças de animais, os abutres impedem a emissão gases pelo processo de decomposição, evitando a emissão de grandes quantidades de metano.

Ou ainda os castores e o restauro de zonas húmidas. As zonas húmidas são um dos habitats terrestres com maior potencial para armazenar carbono e podem ser recuperados pelos castores através da construção de pequenas represas. Mais, para além de regularem o ciclo de carbono, também regulam o ciclo da água, reduzindo o impacto de tanto cheias como secas e criam habitats valiosos para uma grande diversidade de vida selvagem prosperar.

Os fluxos de carbono são dinâmicos. O restauro de interacções entre plantas e animais é a diferença entre reter carbono durante curtos períodos, alguns meses ou anos ou armazenar carbono ao longo de gerações, durante centenas ou milhares de anos. Os animais são a ligação esquecida entre biodiversidade e clima, uma peça em falta para regular a biosfera, o link enfraquecido entre a geosfera e a atmosfera.

É também preciso considerar todos os impactos de estruturas que à primeira vista parecem “verdes” mas que através de um olhar atento talvez não sejam. Por exemplo, as albufeiras das barragens são grandes emissoras de carbono pelo processo de decomposição de matéria orgânica. Será que compensa a energia que produzem face às emissões que criam? Será que compensa a perda de sedimentos em zonas costeiras? Será que compensa a perda de bioabundância e, em alguns casos, a extinção de espécies de peixes migradores?

Por último, o clima influencia a distribuição de espécies de animais, plantas e fungos. Se os ecossistemas estão degradados e fragmentados e as espécies não conseguem migrar para acompanhar as mudanças climáticas que já são inevitáveis, a migração assistida de espécies deve ser algo a considerar. Se o clima da Península Ibérica será cada vez mais idêntico ao do Norte de África, porque não ajudar seres vivos a migrar? Talvez expandir os ninhos de tartarugas marinhas na Península Ibérica, das praias do Mediterrâneo para as praias do Atlântico ou talvez mover espécies de plantas como a tamareira ou de animais como a tartaruga-mora, a gazela-do-Atlas ou o macaco-bérbere. Algumas espécies de aves que não têm barreiras impostas pelo ser humano, já mudaram a sua área de distribuição para se adaptarem às alterações climáticas.

Restaurar ecossistemas através da recuperação de diversas e abundantes populações de animais selvagens é uma das melhores medidas para mitigar e adaptar a paisagem face às alterações climáticas. Algumas cações que podem ser feitas em Portugal: no mar restaurar as migrações de atum que passavam na Costa Portuguesa do Mediterrâneo para o Mar do Norte, as florestas de laminárias (kelp) da Costa Vicentina a Caminha, continuar a recuperar as populações de golfinhos, baleias e cachalotes dos Açores. Em terra, regular o ciclo dos incêndios na paisagem através da reintrodução de herbívoros selvagens, cavalos, burros, touros, veados, gamos, muflões e cabras montesas. Recuperar zonas húmidas através do restauro das populações de castores e remoção de barragens obsoletas e, controlar as espécies invasoras incendiárias, como os eucaliptos e as acácias.

Uma das melhores soluções para resolver as alterações climáticas e inverter a perda de biodiversidade e bioabundância é uma das mais fáceis, baratas e maravilhosas. Animar o ciclo de carbono, dar espaço à natureza e restaurar as populações de animais selvagens.

Sugerir correcção
Comentar