Restaurando a verdadeira História de Portugal

Há muito que ainda está por dizer a pretexto do reconhecimento, pelo Presidente da República, do papel das pessoas ciganas na restauração da independência.

Fiquei surpreendido por este ano, nas comemorações do 1.º de Dezembro, o sr. Presidente da República reconhecer os 250 homens calons que “se acharam alistados no exercito português, desde a restauração do reino, servindo nas fronteiras com zelo e valor com que já forão muitos apremeados”. Com especial menção a Dom Jerónimo da Costa, que “sérvio a V. Magestade tres annos contínuos nas Fronteiras do Alemtejo, com suas armas, e cavallo, tudo á sua custa, sem levar soldo algum, franca, e fidalgamente”, e do qual “relata-se mais em nome de V. Magestade, o valor e esforso, com que em o dito tempo se houve, relatando suas proezas, até que na Batalha do Campo de Montijo foi morto com muitas feridas, pelejando sempre mui esforçadamente”.

E aqui tanto há a dizer-se!

Primeiro, este ato ocorreu no bicentenário da Constituição Liberal de 23 de Setembro de 1822 a partir da qual as pessoas ciganas passaram a ser oficialmente reconhecidas (no papel) enquanto portuguesas. E, contudo, continuam a ser tratadas com discriminação do individual ao estrutural, passando pelo institucional.

Segundo, pelos vistos, sei mais eu, simples amador, do que muitos historiadores “profissionais” da sua praça.

Terceiro, logo após este reconhecimento, boa parte da comunidade branca tem vindo a agir reacionariamente para diminuir este facto testemunhado pelo seu próprio antigo rei. Dizendo inclusive que a isso foram obrigados sob “ameaça de exílio”. Uma difamação contra a honra destes 250 homens que serviram a Restauração da Independência. Propaganda inclusive feita em televisão nacional por um jornalista que, assim, faltou à verdade e ao seu dever de rigor e profissionalismo.

Mas se tal jornalista estivesse mais preocupado em servir a verdade e não correntes ideológicas reacionárias, teria descoberto, em menos de duas páginas, que não sendo considerados nacionais pessoa cigana alguma poderia ser forçada a servir militarmente, por razões de classe (nobreza) e defesa da pátria (os calons eram sempre considerados sujeitos de outra pátria, espanhola para portugueses, portuguesa para os espanhóis, gregos para os turcos, turcos para os gregos…); e como mercenários também não, visto que lutaram pelos seus próprios meios e sem receber pagamento algum. Teria assim sabido que o recrutamento e serviço obrigatório surgiram episodicamente em Portugal muito mais tarde e para aqueles considerados nacionais. Num outro contexto.

Teria apenas lido pelo testemunho do próprio Pinheiro da Costa, o procurador do rei, que "aproveita o caso d'aquelle pobre cigano [Dom Jerónimo da Costa] que serviu a sua patria adoptiva tres annos contínuos com suas armas e cavallo á sua custa, sem soldo, combateu ‘valerosamente no campo, até deixar a vida’, para o antepor ao d'aquelles, não poucos, que d'esse mesmo campo ‘infamemente fugiram, á vista dos que exforçadamente morreram ou pelejaram’, e ao dos que vão ás fronteiras, como a Ormuz, Malaca e Sofala, a vencer soldos e riquezas, com muitas condições, pedindo soldos atrasados, devidos ou não devidos, sem servir á sua custa”.

Uma grande diferença para quem é diminuído de servir por obrigação. Aqui o estar sob “ameaça de expulsão" só lhes acrescenta, pois mesmo não sendo reconhecidos como portugueses, não recebendo soldo nem equipamento algum, estando sob perseguição racista, se alistaram respondendo a um chamado do rei dos brancos portugueses e recusaram fugir ante a morte. Uma bravura que podemos analisar melhor aqui.

Por exemplo, valeu a pena dedicar-se a um reino racista especialmente anticigano? Por uma questão de fronteiras políticas arbitrárias que separam seres humanos por razões geopolíticas ao serviço de classes dominantes elitistas? Note-se como se exige uma dedicação supratotal para que se seja considerado digno de honrarias ou o mínimo de dignidade e que nem mesmo morrendo e matando em nome do rei dos brancos a perseguição anticigana cessou. E até continua nos dias de hoje.

Mas esta história também merece ser contada por um outro ponto.

Eu vejo neste episódio a mulher cigana que luta com bravura pelo que é certo. Reparem, sem medos nem papas na língua, a viúva de Dom Jerónimo da Costa foi defender a honra do seu marido e a vida dos seus filhos e filha. Uma mulher sozinha, viúva, sem poder institucional. Só ela e a sua razão decidiram interpelar o rei! Mesmo quando fora redecretada a expulsão de pessoas ciganas do reino. E foi esta mulher que fez curvar um rei a ponto de o próprio, relutante em parar a perseguição racista anticigana, elevar um homem cigano a cavaleiro e abrir a exceção aos 250 e aos filhos de Dom Jerónimo da Costa a quem um ministro quis “pagar”, remetendo-os a oficiais mecânicos (um cargo de baixo estatuto e que jamais daria acesso a mobilidade social, menos ainda fidalgaria). Sendo que, aí sim, foi dada ordem de poderem servir no Exército como soldados na senda do seu falecido pai, entretanto, e só depois de morto elevado ao estatuto de cavaleiro fidalgo (com direito ao uso de Dom antes do nome).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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