Jerónimo da Costa, o cavaleiro-fidalgo cigano evocado por Marcelo, continua esquecido

O antropólogo José Bastos propunha que este soldado, um dos 250 que “serviram nas fronteiras” na Restauração, fosse o “patrono nacional dos portugueses ciganos, com direito a estátua e avenida”.

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Marcelo Rebelo de Sousa foi à história buscar exemplos de ciganos de valor LUSA/ANTÓNIO COTRIM

O Presidente da República surpreendeu neste 1.º de Dezembro ao evocar, na sua nota de evocação da Restauração da Independência, “os portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional”.

Marcelo Rebelo de Sousa lembrou “o ‘cavaleiro-fidalgo’ Jerónimo da Costa e muitos dos duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras, ‘procedendo na forma de traje e lugar dos naturais’, [que] tombaram por Portugal”. “Portugal lembra-os, presta-lhes homenagem e exprime a sua gratidão. Este dever de memória é de elementar justiça e rompe com tanto esquecimento e discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso país”, acrescentou.

Uma história pouco conhecida, mas que foi contada por Tomé Pinheiro da Veiga (1566-1656), político, escritor e procurador da coroa durante o reinado de D. João IV, que citava o caso contemporâneo “d’aquelle pobre cigano” que serviu a sua pátria “três anos contínuos com suas armas e cavallo à sua custa, sem soldo”.

Esse testemunho é evocado por Adolfo Coelho em Os ciganos de Portugal: com um estudo sobre o calão, que acrescenta que esse cigano combateu “até à morte por um país que, 400 anos depois (em 1892) ainda persegue a sua etnia”. E evocava os “mais de 250 homens d’essa raça” que “alistados no exército português, desde a restauração do reino” serviram “nas fronteiras com zelo e valor com que já foram muito apremeados”.

A participação dos portugueses ciganos na Restauração da Independência é um facto historicamente comprovado, desde logo pelo próprio D. João IV, que, em alvará de 1649, determina que as ordens de prisão e degredo aplicáveis em geral aos portugueses ciganos não deveriam ser aplicadas “aos mais de 250 ciganos alistados que estavam servindo nas fronteiras, procedendo na forma de traje e lugar dos naturais”, e, por isso, receberam licença dos governadores das armas “para morar em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”.

O facto é também relatado em Etnografia Portuguesa - Obra etnográfica completa, de Rocha Peixoto (2020): “Um alvará de D. João IV e a carta do enérgico e inteligente procurador da coroa, Tomé Pinheiro da Veiga, contam-nos que mais de 250 homens dessa raça se acharam alistados no exército português desde a restauração do reino, servindo nas fronteiras ‘com zelo e valor com que já foram muito apremeados’.

Ali se evoca também Jerónimo da Costa, que combateu “valorosamente no campo, até deixar a vida”, o que “põe em contraste o proceder dele com o de tantos, não poucos, que desse mesmo campo infamemente fugiram, à vista dos que esforçadamente morreram ou pelejaram”.

Em resposta a petição da viúva, Jerónimo da Costa foi “feito cavaleiro-fidalgo”, a sua “mulher e filhos […] havidos como naturais do reino” e os “descendentes não tenham ofício mecânico e sirvam como soldados”. Em 2008, o antropólogo José Gabriel Pereira Bastos, falecido no ano passado, propôs que Jerónimo da Costa fosse designado “patrono nacional dos portugueses ciganos, com direito a estátua e avenida”.

“Tantos anos passados e ainda não existe em Portugal nem uma viela em nome do cavaleiro cigano; a única rua em seu nome fica em S. Paulo, no Brasil”, lembra a Presidência da República numa nota informativa elaborada a este respeito para a evocação de Marcelo Rebelo de Sousa.

O Presidente da República quis, desta forma, lembrar os feitos históricos daqueles portugueses ciganos poucas horas antes de receber o presidente do Chega, André Ventura, que ainda há dois meses foi repreendido pelo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, por “discursos injuriosos” no Parlamento contra a comunidade cigana, na sequência de uma intervenção em que defendeu que as pessoas ciganas gozam de uma “impunidade brutal” em Portugal.

Isto já depois de o líder do partido ter sido chamado à atenção por Santos Silva, em Abril, no Dia Internacional das Pessoas Ciganas, por ter afirmado, entre outras declarações, que as minorias são “apaparicadas”, uma posição agora contrariada pelo chefe de Estado.

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