Mulheres em câmara lenta

Em Portugal, as primeiras equipas de futebol feminino datam dos anos 1980 – as jogadoras garantem ter ouvido frases como “Ide antes lavar a loiça”.

O governo britânico criou em 1915 o Ministério das Munições para assegurar a produção e distribuição de munições às unidades militares da Primeira Guerra. Com os homens na frente de batalha, calcula-se que cerca de um milhão de mulheres tenha trabalhado em fábricas de equipamento militar no tempo que a guerra durou. As trabalhadoras, então conhecidas por munitionettes, com claras ligações às suffragettes, dedicam-se ao futebol, actividade consentida pelos donos das fábricas por considerarem os jogos “um mal necessário” que acabava por contribuir para a produtividade e disciplina entre as mulheres "deslocadas dos seus papéis tradicionais”.

Em 1917, é jogada a Munitionette Cup, com o fim de angariar fundos para ajudar vítimas do conflito. Os jogos atraíram milhares de espectadores e jogadoras como Bella Raey, que nessa temporada marca 133 golos, tornam-se heroínas populares. O campeonato angariou à época cerca de 40 mil libras, valor distribuído por ex-combatentes, hospitais e crianças carenciadas.

Em 1921, três anos depois do fim da guerra, a prestigiada equipa da fábrica Preston, com o nome de Dick, Kerr’s Ladies Team, organiza um torneio que reúne mais de 50 mil espectadores. No pós-guerra o futebol feminino continua em alta e as suas jogadoras são celebradas. Lentamente a vida recompõe-se, os homens querem voltar a jogar futebol e para que isso aconteça julgam fundamental fazer regressar as mulheres ao espaço doméstico.

Foto
Equipa do Dick, Kerr Ladies F.C., em 1922, em Pawtucket, Rhode Island, EUA Gircke/ullstein bild via Getty Images

A Federação Inglesa de Futebol olha para a dinâmica futebolística das mulheres com enorme suspeita, tanto mais que as equipas femininas insistem em aplicar os lucros obtidos em esforços de recuperação da guerra, pondo em causa a retoma deste desporto como negócio puro e duro.

No final de 1921, a Federação decide banir o futebol feminino, impedindo as jogadoras de organizarem jogos nos seus estádios. Para validar este seu gesto, reúne pareceres médicos que garantem que a prática de futebol constitui um risco sério de saúde para as mulheres, incluindo a infertilidade. As mulheres reagem, alegando que quem tem “maior risco de infertilidade são os homens, dado o carácter externo dos seus órgãos”. Nada feito. A Dick, Kerr's, e todas as outras equipas, perdem reconhecimento e apoio oficial.

Os clubes femininos continuam a organizar jogos, mas fazem-no sem condições; equipam-se dentro de carros, colam as redes da baliza com fita adesiva, em campos improvisados e lamacentos. Só 50 anos mais tarde, em 1971, é que a proibição é levantada. Muitos outros países conheceram impedimentos semelhantes. No caso de Portugal, as primeiras equipas de futebol feminino datam dos anos 1980 – as jogadoras garantem ter ouvido frases como “Ide antes lavar a loiça”.

Foto
Isabella (Bella) Reay (1900–1979) jogou pelo Blyth Spartans e pela Inglaterra Newcastle Libraries/Flickr

Em Julho de 2023 vai ter lugar a a fase final do Campeonato do Mundo Feminino, acolhido pela Austrália e a Nova Zelândia, dois países democráticos. Portugal ainda não está apurado, mas segue para o play-off intercontinental, disputado por jogadoras da seleção nacional como Jéssica Silva, Kika Nazareth ou Diana Silva. É a oportunidade de ver futebolistas de todo o mundo, por exemplo Marta Vieira da Silva, ponta de lança da seleção brasileira, “rainha do futebol” que, com 36 anos, deseja fechar a carreira em 2023, no seu sexto Mundial.

No verão do ano que vem é imperdoável não reunir os meios técnicos e propagandísticos para que possamos apreciar — nas principais estações de televisão e com o devido esplendor — imagens de mulheres em câmara lenta, a correr pelos campos de braços abertos, depois de um golo espetacular.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários