O corpo tem degraus

Os talentos quando despontam o seu potencial são pessoas diferenciadas. Pela expressão da sua excelência. Pelo modo como fazem coabitar esse talento com outras dimensões da vida. Por variadas razões — intrínsecas e extrínsecas às suas capacidades de excepção — destacam-se dos demais. É, em parte, essa diferença que os distingue como pessoas extraordinárias que são, sobredotadas, geniais, capazes de fazer o que poucos conseguem. É o que ocorre com um grande escritor, um grande pintor, um grande músico, um grande bailarino ou um grande desportista.

Aos talentos, no auge das suas carreiras, tudo se aceita em nome da dimensão do êxito que alcançam. Mas como não é humanamente possível garantir a permanência desse êxito até ao final das suas vidas, designadamente naquelas actividades onde a idade condiciona mais o respectivo desempenho, é muito elevado o risco de lhes ser cobrado o natural declínio das suas carreiras.

São também, muitas vezes, incompreendidos, pois a forma como vêem o mundo e o interpretam diverge dos demais. Centrados no aperfeiçoamento quase obsessivo das suas capacidades, autocentrados no sucesso e respectivo reconhecimento social, enfrentam dificuldades em conviver com o inexorável declínio e os momentos das respectivas carreiras onde se impõem limitações inultrapassáveis.

Num desportista, e particularmente num desportista de alto rendimento, a parte final da respectiva carreira pode ser muito difícil e muito complexa. E muitos têm dificuldades em assumir, confrontar-se e superar esse momento, pois é algo que não se controla como um processo de treino.

Numa abordagem simples, a cabeça quer, o que o corpo já não consegue. Esta percepção, salvo algumas excepções, ocorre primeiro com quem o treina e dificilmente é aceite pelo próprio. O declínio pode emergir de forma quase imperceptível (quando o esforço que sempre se produziu começa a traduzir efeitos cada vez mais insatisfatórios) ou abrupta, quando num movimento outrora familiar agora se instala uma lesão grave.

A aceitação que para o comum dos cidadãos tende a ser natural, simples e isenta de problemas complexos, aqui mostra-se demasiadas vezes forçada, revelando uma enorme densidade emocional, que justifica por si só que alguns venham a solicitar acompanhamento especializado como a literatura da especialidade evidencia. São muitos os exemplos nacionais e internacionais conhecidos.

O corpo tem degraus todos eles inclinados, escreveu José Tolentino de Mendonça. Uma verdade que se aplica também aos génios. Mesmo sabendo que muitas vezes estamos preparados para aplaudir o sucesso e impreparados para o declínio do corpo, como é próprio da natureza humana. Porque neste domínio nem os génios escapam.

Aplaudamos a genialidade sabendo que o que ela alcança em circunstância alguma pode ser desvalorizado pelo facto natural de não poder ser mantida para todo o sempre.

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