TV a cores

Neste fim de semana, fomos surpreendidos com a representatividade cigana na televisão. Parecia que subitamente estava noutro país.

Sabemos que devemos ficar contentes com o facto de, no 1.º de dezembro, dia da Restauração da Independência, o Presidente da República, finalmente, passados estes anos de insulto anticigano constante na Assembleia da República e no espaço público, ter recordado a participação das comunidades ciganas na construção deste país e a necessidade de romper “com tanto esquecimento e discriminação”.

Foi com Piménio Ferreira, ativista cigano, que ouvi pela primeira vez falar do episódio do cavaleiro fidalgo Jerónimo da Costa e dos 250 outros soldados ciganos que “deram a vida” em 1640 pela independência de Portugal. É uma história desconhecida para a generalidade das pessoas e que se tem permitido que fique absolutamente ausente nos manuais escolares de História. Como refere o Presidente da República, a bravura e importância desses soldados foram reconhecidas pelo próprio rei D. João IV. Num alvará de 1649, o monarca permitia que vivessem no reino conforme os “naturais da terra”. Mas é preciso que se diga também que isso fazia parte de uma estratégia de recrutamento de um exército que precisava de efetivos e que as pessoas ciganas que não fossem soldados, portanto, a larga maioria, estavam sujeitas a um dos reinados mais cruéis para a comunidade.

A consolidação da nacionalidade portuguesa fazia-se à custa, entre outras coisas, da exclusão legal das pessoas ciganas. O rei D. João IV, não só as considerava como estrangeiras (recorde-se que só serão consideradas cidadãs portuguesas em 1822), equivalentes em estatuto à categoria de “vagabundo”, como promulgaria inúmeras leis discriminatórias que as condenariam à expulsão do território, à clandestinidade étnica, à separação das suas famílias e à assimilação perante a proibição de falarem a sua língua e viverem a sua cultura.

As pessoas ciganas eram também degredadas para as colónias e enviadas para as galés, entre os séculos XVI e XVIII, e, desse modo, o “Estado racial” respondia a dois objetivos. Por um lado, fazia-se uma “limpeza étnica” no centro do império e bania-se para os confins da identidade nacional os portugueses ciganos. Por outro, o envio das pessoas ciganas para o degredo nas colónias e para as galés servia para as colocar ao serviço dos interesses desse mesmo Estado, na subjugação dos povos originários do Brasil e de África, num dos capítulos mais sangrentos da história da Humanidade.

Sabemos que, perante a calamidade e impunidade do racismo, devemos regozijar-nos com aquele e outros gestos pontuais e simbólicos de Marcelo Rebelo de Sousa. Foi o primeiro Presidente da República a estar presente nas comemorações do Dia Internacional da Comunidade Cigana (8 de abril de 2018). Esteve no Bairro da Jamaica no rescaldo do episódio de violência policial e fotografou-se com membros da família Coxi, o que lhe terá custado a simpatia de alguns sectores da polícia. Tem procurado, aqui e ali, aparecer junto com comunidades racializadas, mas os seus discursos continuam pejados de lusotropicalismo. Para além disso, perante o avanço da extrema-direita, ele e outros da nossa elite política têm optado por não confrontar, através dos mecanismos institucionais, o Chega de André Ventura. A ideia é, supostamente, não lhe "dar palco”, mas, enquanto isso, da parte de fora das ameias do castelo, o ódio racial alastra contra as comunidades ciganas e contra a juventude negra.

Somos também forçados a considerar que é já alguma coisa que Augusto Santos Silva repreenda o líder do Chega na Assembleia da República, que o Tribunal Judicial obrigue André Ventura a fazer uma “retratação pública” por ter chamado “bandidos” à família Coxi, algo que este (des)cumpriu, dizendo "peço desculpa porque tribunais me obrigaram”, descredibilizando a decisão institucional e invertendo os efeitos que esta visava alcançar. Os gestos simbólicos públicos são importantes, mas, se não forem acompanhados de medidas concretas, são inconsequentes.

Nem me estou a referir ao fundamental –​ como faz, e bem, Bruno Gonçalves, dirigente da Associação Letras Nómadas –, que é combater desigualdades estruturais como a pobreza extrema que toca uma parte mais do que significativa da comunidade cigana, o facto de 33% residir em habitações precárias e de terem uma esperança de vida 19 anos abaixo da média. Refiro-me aqui apenas ao bom que seria se as instituições que salvaguardam o cumprimento da Constituição não dessem assento ou não permitissem a continuidade de um partido e um deputado com um discurso manifestamente anticigano, persecutório e que incita ao ódio racial na Assembleia da República. Como dizia há algum tempo atrás Olga Mariano, ativista incontornável do movimento associativo cigano: “Não há ninguém que lhe diga chega?”

Somos levados a regozijar-nos com a mensagem do Presidente da República no 1.º de dezembro, mesmo sabendo que a estratégia do “Roma excellence” (ou do “Black excellence”) tem as suas armadilhas. Ter de convocar “grandes” figuras e feitos heroicos, como o episódio do cavaleiro Jerónimo da Costa e dos 250 ciganos que lutaram pela restauração, para convencer a maioria branca de que as pessoas ciganas são dignas de respeito e até dos mesmos direitos, pode conceder maior respeitabilidade a alguns, mas, ao mesmo tempo, é ceder à ideia de que para ter “direitos iguais” é preciso merecê-lo, não basta ser-se humano.

Neste fim de semana, fomos também surpreendidos com a representatividade cigana na televisão. No sábado à noite, a RTP 2 passou um espetáculo de flamenco da reconhecida coreógrafa e bailarina Maria Pagés. Como não poderia deixar de ser, o espetáculo remetia para o universo cigano, ao que nele se faz de melhor no campo da dança e da música e se oferece para o arquivo da humanidade. Mas a direção do espetáculo não era cigana. Curiosamente, na noite seguinte, no mesmo canal, o tema do programa Scroll era, exatamente, a apropriação cultural, debatida entre jovens afrodescendentes, uma delas cigana, e um jovem branco. Na RTP1, no programa The Voice, dos poucos que têm representatividade negra no seu júri, com Dino D'Santiago, um cantor cigano, Rúben Torres, encantava com uma versão do Gente da minha terra (tão a propósito!), e o público votava a favor da sua permanência no programa. Na SIC, um outro homem cigano cantava na Gala dos Sonhos, era Nininho Vaz Maia.

Parecia que subitamente estava noutro país, num país em que entrar com um grupo de amigos ciganos num restaurante para jantar não suscita de imediato, da parte dos restantes clientes e funcionários, toda uma linguagem corporal de desconforto e repulsa. Um país em que o ministro da Administração Interna e o diretor nacional da PSP não negam a existência de racismo estrutural, não tresleem o significado do conceito, e avançam com medidas efetivas para o mitigar. Um país em que as instituições políticas e policiais pura e simplesmente não toleram no seu interior representantes e funcionários com discursos racistas, nem medidas marcadas pelo racismo institucional. Esse país ainda não existe, sabemos.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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