Fundos europeus: uma paródia?

Não posso dizer qual dos maiores defeitos dos governos portugueses é o maior, mas sei qual deles não merece ser seguido: a propensão para a corrupção no momento de administrar o bem de todos.

Criado pelo Conselho Europeu e perseguindo o objectivo de se tornar um instrumento de mitigação do impacto económico e social, o Next Generation EU converge com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), no sentido de implementar reformas e investimentos destinados a repor o crescimento económico que a pandemia inibiu. Os montantes, bem o sabemos, são à escala europeia, e a prosápia da melhor: assentam em três dimensões estruturantes – Resiliência; Transição Climática; Transição Digital.

Em Outubro último, o Presidente da República deixou claro que os casos de mau uso e de fraude, relativos aos fundos europeus, não seriam perdoados pelos portugueses, e, já em Novembro, referindo-se à sua disponibilidade, reafirmou que Portugal deve tirar “o máximo proveito daquilo que são factores que são conjunturalmente, apesar de tudo, favoráveis”. Em suma: há bagalhoça. O problema serão os vícios mentais.

Não posso dizer com rigor qual dos maiores defeitos dos governos portugueses é o maior, mas sei qual deles não merece ser seguido: a propensão para a corrupção no momento de administrar o bem de todos. Quando isso acontece, todo o palavreado de “igualdade de sacrifício” é destituído de sentido. O que desperta imediatamente a atenção nestas alturas é a sobranceria irresponsável de pessoas que sempre estiveram – e esperam vir a estar – numa posição de poder, que comprometeram o seu lado emocional e renegaram o mundo das ideias, e mantêm contacto demasiado próximo com a realidade sensível e o mundo dos negócios. Já não há ilusões.

Isto – a aplicação de fundos, a fraude, o desvio, a negociata, a teia de influência e de relações familiares e tribais na esfera da administração pública, bem como a realidade criminosa por peculato transversal aos vários sectores de Estado – explica muito do que é o país e do que há no país. Já não estamos no domínio da governação. Todo o aparelho de Estado, na sua rede de institutos mais ou menos inefáveis, vive numa profunda conspiração de silêncio, quebrada somente na malha de contactos a que alguns conseguem aceder. Houve um tempo em que se teve o sentimento íntimo e genuíno de que o Estado era “pessoa de bem” e que, com maior ou menor propriedade, a moral era equitativamente distribuível. Era o tempo em que havia a necessidade psicológica de certos “líderes”. Hoje, nenhum programa político (e social) é levado devidamente a sério. Até porque o voto na urna tende a constituir-se mais a manifestação estratégica pessoal do que o resultado de militantismo.

A propósito de fundos europeus, o meu vizinho investiu cerca de 10.000 euros numa bomba de calor, ao abrigo do Programa Edifícios + Sustentáveis, parte dos quais esperava ver reembolsados pelo bom do Estado, a crer na sinceridade fundamental das instituições. Ultrapassada a fase da candidatura (inacessível, pelo grau de complexidade, a inúmeras pessoas), deparou-se com informações de falhas na tramitação. Reparada a falta, foi confrontado com a exclusão da candidatura, por não ter, alegadamente, submetido resposta a elementos solicitados.

O meu vizinho jura a pés juntos tudo ter cumprido e alega ter sido mal esclarecido na linha de apoio aos Fundos Ambientais e que, se tudo foi por água-abaixo por causa de uma cruzinha em falta numa checkbox, isso só quer dizer que aquela gente administra o erro do candidato e gere-o para o desclassificar. Neste momento, está irredutível: “as verbas estão a ser canalizadas sob práticas arbitrárias”, diz ele, acrescentando que “só pode haver promiscuidade entre os agentes que administram os fundos e aqueles que deles beneficiarão, escolhidos, vá-se lá saber sob que critérios, mas seguramente em conflito de interesses”. E agora não pode ouvir falar do Fundo Ambiental nem da ADENE e o raio que a parta, sem que os considere uma paródia grosseira.

Deveríamos poder acreditar em conceitos como o de justiça, protecção social, verdade objectiva. São conceitos sólidos que contêm significado, asseguram a unidade nacional, sublinham a confiança nas instituições e conferem uma ilusão de fraternidade. Mas a verdade é que palavras tão afins como unidade, confiança, fraternidade, protecção e justiça têm múltiplos significados, diferentes entre os usuários, e irreconciliáveis entre si.

Vem aí o Natal. É a melhor coisa que nos poderá acontecer, porque é algo com que, goste-se em maior ou menor grau, quase todos concordam. Há o sentimento quase universal de que, se nos reunirmos nessa altura, somos melhores pessoas. É uma ideia generalizada, usada de uma maneira manifestamente desonesta, pois não corresponde à verdade. Mas, pelo menos, deixa-nos acreditar e raramente nos desaponta.

Feliz Natal.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários